acervo do autor
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           O telefone toca. Interrompo a revisão de mais uma crônica saudosista — outra sobre minha infância besta.  

           O celular, entre o Arqueiro Verde e o Jorge Amado, insiste.

            — Alô.

             — Fala, meu amigo. Muito ocupado?

            Umberto de M., escrevinhador como eu, sabe: estou sempre muito ocupado.

            — Preciso te contar uma coisa. Você, que anda flertando com a alta roda, devia ficar de olho aberto.

            Do que ele fala? Fecho a janela — os saxofones e o falatório no pátio do conservatório não me deixam raciocinar direito.

            — Espero que abandone essa ideia de jerico de entrar pro grêmio literário da sua cidade depois que ouvir o que vou contar.

            Ah, então é isso. Engraçado: quando se candidatou à Academia de Ares Formosos, não dei palpite.

            — Vou começar do começo, pra você acompanhar meu pensamento.

            Quanta generosidade, penso, olhando os parágrafos mal distribuídos na tela do notebook.

            — Mais cedo compartilhei o link da petição contra a PEC da Blindagem... quero dizer, da Bandidagem, porque aquilo é mais uma canalhice do Congresso. Espalhei em todos os grupos, inclusive no da academia de letras da qual sou confrade. O amigo acredita que, minutos depois, recebi chamada do presidente? Eu me barbeava, quando o celular desesperou a tocar.

            Para você ver como é chato ser interrompido — ainda mais de manhã.

            — Claro que atendi. Poderia ser convite pra conferência ou evento literário. Infelizmente, não era. O impertinente exigia que eu apagasse a mensagem. Pois é, amigo: fui censurado no espaço em que, teoricamente, se preza a liberdade de expressão. Claro e direto, o sujeito informou que debates políticos não são admitidos naquele grupo. E veio com o papinho de sempre: que concorda comigo, que até assinou a petição, que me entende... Cortei no talo e respondi: “Entendi. Agora dá licença que preciso cuidar de mim.” E desliguei.

            — E aí?

            — Aí que, por causa desse cretino, cortei o queixo.

            — Isso passa.

            — O corte no queixo passa, já cicatrizou. Mas a censura violou-me a alma. E isso não cicatriza. Never, como diria o bardo imortal.

            Sai de baixo quando Umberto desembesta para o melodrama.

            — Enquanto o sangue escorria pelo queixo, voltei ao grupo. O amigo acredita que a administradora, uma escrevente insossa de óculos fundo-de-garrafa, já tinha deletado a mensagem? E não satisfeita, me enviou um áudio... Escuta aí.

            Desinteressado e na velocidade 1,5, ouvi:

“Você postou uma publicação lá — o presidente até concorda, e eu também — mas a gente pede para que não trate de assuntos políticos. Porque, infelizmente, dentro da nossa entidade tem gente que é a favor da bandidagem, né? Então, a gente prefere que não se poste nada nesse sentido. Aí o presidente me ligou e eu fui lá, como administradora, e retirei a mensagem. Tá bom? Mas saiba que já assinei a petição.”  

            — A censura voltou, amigo. Mas dessa gente ordinária não se espera nada. Bando de embusteiros pernósticos. Pra mim, foi o Charles Parafuseta, que se acha o bambambã da cidade e adjacências, quem denunciou minha postagem. Porque, assim que compartilhei, o babaca escreveu: “O silêncio é a resposta dos iluminados. O silêncio, antes de tudo, abranda a procela e imobiliza a ventania. E, considerando que todos estamos inscritos na escola do viver, é forçoso reconhecer o Tempo como nosso Grão-Mestre.”

             Umberto de M. solta uma gaitada debochada.

            — Amigo, como diria o José Simão: é mole, mas sobe. Agora deixa eu voltar pros meus afazeres, e você pros seus.

            Encerrada a ligação, volto às minhas bobajadas nostálgicas.