O romance intimista de Amélia Beviláqua

As reflexões desses incidentes da vida, que os anhos empalidecem, são as flores de pétalas muito tristes, que se desfolham e vão semeando pelo mundo os bons e os maus sentimentos.  

Amélia Beviláqua

 

 

Carlos Evandro M. Eulálio

Da Academia Piauiense de Letras

Cadeira 38

 

No âmbito da literatura brasileira, Amélia Beviláqua situa-se entre as principais escritoras que atuaram com mais visibilidade no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. São elas:

- Ana Barandas (1806-1863), considerada no período em que viveu uma mulher à frente de seu tempo. Sobre a autora e o seu livro de crônicas Diálogos (1845), diz a historiadora Hilda A. Hübner Flores da PUC-RS:

Ana Barandas, até prova em contrário, é a primeira mulher poetisa-cronista-novelista do país [...] Na crônica Diálogos ela põe a desnudo seus anseios feministas e mostra ser mulher avançada para seu tempo, inquieta ante os acontecimentos bélicos, pronta para a ação”.[1]

 

- Nísia Floresta (1810-1885), poeta e educadora norte-rio-grandense de Papari, cidade que hoje leva seu nome. Escreveu a obra Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens, tendo participado ativamente das campanhas abolicionista e republicana.

- Maria Firmina dos Reis (1822-1917) de São Luís do Maranhão. Educadora, musicista, poeta e contista, criadora da primeira escola mista no Brasil e autora do conhecido romance abolicionista Úrsula (1859).

- Júlia Lopes de Almeida (1862-1934). Escreveu romances, contos, crônicas, ensaios e peças de teatro. Em 1887, morando em Portugal, conheceu o poeta e jornalista Filinto de Almeida (1857-1945) com quem se casou. A obra mais conhecida de Júlia Lopes de Almeida é o romance A Falência, com traços realistas e naturalistas. Foi a única mulher que participou dos trabalhos do grupo que idealizou a criação da Academia Brasileira de Letras (1897), no entanto, foi impedida de ali ingressar, porque a instituição alegou seguir o modelo da Académie Française, que não permitia a participação de mulheres em seus quadros. Assim, a cadeira de número 3, que ainda na fundação da ABL deveria ser da autora foi, então, concedida ao seu marido Filinto de Almeida.[2]  

Nesse contexto, sobressaiu-se também Amélia Carolina de Freitas Beviláqua (1861-1946), natural de Jerumenha-Piauí. Ainda criança residiu em São Luís do Maranhão, onde o pai foi juiz e presidente da província. Concluiu seus estudos em Recife-PE. Casou-se em 1883 aos 21 anos de idade com o escritor e jurista Clóvis Beviláqua, professor da Faculdade de Direito do Recife, autor do Código Civil Brasileiro de 2016, além de crítico literário e autor de livros de direito, filosofia e história.  A exemplo de Júlia Lopes de Almeida, Amélia Beviláqua também tentou, em vão, ingressar na ABL, candidatando-se na vaga de Alfredo Pujol (1865-1930). Foi a primeira mulher brasileira a se candidatar oficialmente a uma vaga na ABL. Pelos mesmos motivos, seu nome foi rejeitado na sessão extraordinária da ABL do dia 29 de maio de 1930. Indignada, em 1930 escreveu sobre esse fato a obra A Academia Brasileira de Letras e Amélia Beviláqua, tendo por subtítulo Documentos Histórico-Literários (referentes à recusa de sua inscrição à vaga da Academia). Inconformado Clovis Beviláqua deixou definitivamente de comparecer às reuniões da ABL. Na Academia Piauiense de Letras, a autora foi a primeira ocupante da cadeira 23, hoje pertencente à historiadora Teresinha Queiroz.  

Amélia Beviláqua escreveu poesia, ensaios de crítica literária, romances e contos. Suas poesias estão dispersas em jornais e revistas. O romance predomina em sua produção literária. Muitos deles estão esgotados, encontrados apenas em sebos ou em bibliotecas públicas ou particulares.

Açucena, um de seus principais romances, foi publicado em segunda edição pela Academia Piauiense de Letras, na Coleção Centenário em 2019.  Romance intimista, com traços ultrarromânticos, reflete em suas páginas sentimentos e conflitos internos da personagem, diferenciando-se de seus romances de tendência realista-naturalista.

O livro narra em onze capítulos a história de Açucena que dá título ao romance.   Para melhor compreensão da obra, nós a dividimos em três partes. Na primeira, que vai do 1º ao 4º capítulo, Açucena é retratada como criança de boa índole, dócil e de refinada educação, além de ser muito amada pela família. Nutria terna e sincera amizade pelas colegas de escola, em especial por Suzana, de família humilde, que fingia ser sua grande amiga, mas tudo fazia para explorá-la financeiramente e contrariá-la com atitudes de sadismo, inveja e ingratidão. Neste trecho, sobre o perfil de Suzana descreve o narrador, comparando-a com Açucena:

Descendendo a Suzana de uma família muito pobre e inferior, era isso encoberto pela meiguice da outra, que repartia com ela seus vestidos, suas joias e brinquedos. Às vezes, até parecia que a rica era a Suzana. [...] A Suzana, a mais amada de todas as suas amigas, foi talvez a pior, que lhe arrancou até o coração (Beviláqua, 2019, p.31-32).[3]

 

A segunda parte inicia-se no 5º capítulo, tendo como cenário não mais a provinciana cidade (não nominada) em que a personagem viveu os primeiros anos da infância, mas o Rio de Janeiro, onde os pais de Açucena fixaram residência no bairro Copacabana. O narrador assim alude a esse acontecimento:

 

Deixando a terra natal, veio Açucena, com os seus, residir no Rio de Janeiro, onde seu pai tinha meios seguros de progredir em seus negócios. Aqui chegaram no dia 13 de fevereiro de 1912, quando o Brasil em peso lamentava a morte do Barão do Rio Branco. As multidões se moviam para levar ao túmulo o querido chanceler, e os espessos véus de luto se estendiam pela cidade que chorava abismada, acompanhado as notas fúnebres daquela dolorosa marcha de Chopin, gemida em harmonia com os sinos e os corações (Beviláqua, 2019, p.53).[4]

 

Logo que chegou ao Rio de Janeiro, Açucena ficou alguns dias na casa de um casal amigo de seus pais, que tiveram de se ausentar do País por pouco tempo, em viagem à Europa. Nessa breve estada entre estranhos, por presenciar de maneira involuntária cenas de adultério protagonizadas pelos anfitriões, Açucena foi, por esse motivo, bastante hostilizada. Nesta passagem, fica evidente que a personagem, ao reencontrar os pais, nada comentou sobre esse fato.     

Resistindo, tudo suportando com paciência, viveu entre as intrigas esperando seus pais. [...] nada disse sobre o mal tratamento que ali na perniciosa convivência recebera. Seu pai, além da pensão e despesas apresentadas, ainda gratificou generosamente os falsos amigos, presenteando-os com joias de alto preço (Beviláqua, 2019, p.67).[5]

 

Açucena a tudo suportava com resiliência, procurando nas situações mais difíceis manter a pureza de alma, mesmo num ambiente hostil que viesse a contrariar seus próprios valores morais.

A terceira parte do romance tem início no 6º capítulo. A personagem sempre procura esquecer o seu passado conturbado de frustrações e decepções sem, no entanto, guardar rancor, pelo contrário, o que mais desejava era viver em paz consigo e com os outros. Seguem dias de muita alegria. Surgem novas amizades. Namora o interesseiro Conrado, por alcunha Condezinho, e se mostra radiante de felicidade:

 

A paz se estendeu por todos os recantos de sua alma, que estava estacionada, prestes a morrer. Então passava os dias distraída, a pensar neste querido noivado, e esqueceu-se de todas as dores. Era feliz, muito feliz (Beviláqua, 2019, p.72).

 

Até que um inesperado acontecimento assinala o reinício de uma outra fase em sua vida. Faltando oito dias para o casamento, soube que Conrado já era comprometido com Rosa, sua melhor amiga. Este trecho mostra a reação de Açucena, após tomar conhecimento desse caso:

 

Desvencilhando-se da Rosa, voltou Açucena a Copacabana. Ia tonta de dor, com a cabeça rodando, e o coração em convulsões, que lhe tiravam a vista e o fôlego.  – Quanto sou infeliz!... Não pensava, quando me vestia com tanto apuro, que fosse somente para receber a morte... Por que ele me enganou? Antes, mil vezes, morrer do que trair os outros. Será ela a mulher do Conrado. Não o quero mais ver. O coração me diz que aquilo entre eles não é o verdadeiro amor. Entretanto, por que, faltando apenas oito dias para nos unirmos, ainda ele dá esperanças à Rosa? (Beviláqua, 2019, p.100).[6]

 

Após esse episódio, a narrativa se encaminha para o desfecho. As páginas seguintes são intimistas, com ênfase na análise psicológica e na reflexão sobre o mundo interior da personagem. Por meio do discurso indireto livre, o narrador onisciente, em terceira pessoa, reproduz os pensamentos e emoções da personagem que expressa seu ponto de vista sobre determinadas situações vividas. Isso contribui para intensificar na obra a atmosfera de introspecção característica desse gênero de romance, como vemos nesta passagem:  

Quero viver. Sou muito moça ainda. As lindas asas verdes de uma terna e carinhosa esperança serão o fanal, que me adoçará os dias. Essa querida companheira será o meu enlevo, o sonho dourado, a derradeira paixão na terra que entrará comigo para o abismo.                                                                  (Beviláqua, 2019, p.146).[7]

 

Açucena pode ser também classificado como um romance de personagem que, na visão do estudioso de literatura Wolfgang Kayser (1906-1960), citado por Aguiar e Silva, caracteriza-se pela existência de uma única personagem central,

[...] propenso para o subjetivismo lírico e para o tom confessional, como sucede com Werther de Goethe (Aguiar e Silva, 1968). [8]

 

Nesse tipo de romance o título geralmente é bem significativo e em geral coincide com o nome da personagem central.

Para o historiador Monsenhor Joaquim Raimundo Ferreira Chaves (1913-2007), citado por Renata Bernardino,   

Amélia foi uma das mulheres mais importantes do começo do século XX. Ele diz: ‘O gênero literário por excelência de Amélia é o romance. Nele, ela põe toda sua alma vibrátil de mulher superiormente enriquecida de vários dotes de espírito’. E ainda observa: ‘ela analisa, com requintes de psicólogo, os dramas interiores das personagens que desfilam nas suas páginas, vivos, insinuantes e autênticos (Bernardino, 2018).[9]

 

           

Na obra Açucena a representação da mulher é distinta daquela que se observa em outros romances, geralmente classificados como romances de crítica social, como por exemplo a obra “Através da vida”, cuja narrativa enfatiza a violação dos direitos da mulher,

“não apenas quanto à escolha do marido, mas principalmente, quanto à opção de instruir-se, por meio do estudo formal de passar pelo processo de escolarização e conquistar um diploma” (Magalhães, 2024).[10]

 

De outro enfoque, podemos considerar Açucena um romance do gênero psicológico, cuja personagem, vítima de infortúnios, mágoas e desilusões, por meio da autorreflexão, começa a entender que essas tribulações constituem uma oportunidade de crescimento e aprendizado para superá-las e alcançar novos objetivos de vida. Nesse sentido, a leitura do romance Açucena pode proporcionar ao leitor lições de resiliência e de como melhor compreender a complexidade das relações humanas no mundo contemporâneo.       

             

 

 

 

 

 

 


[1] FLORES, Hilda Agnes Hübner. Ana Eurídice Eufrosina de Barandas. In https://literaturabrasileira.ufsc.br/documentos. Acessado em 18.5.25.

 

 

[2] https://brasilescola.uol.com.br/literatura/maria-firmina-dos-reis.htm, acessado em 20.10.25.     

 

[3] BEVILÁQUA. Amélia de Freitas. Açucena. Teresina: Academia Piauiense de Letras, Coleção Centenário n. 120, 2019.

[4] BEVILÁQUA, op. cit.

[5] BEVILÁQUA, op. cit.

[6] BEVILÁQUA, op. cit.

[7] BEVILÁQUA, op. cit.

[8] AGUIAR E SILVA, Victor Manuel de. Teoria da Literatura. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1974.

 

 

[9] BERNARDINO, Renata Fonseca. As Escritoras na Academia Brasileira de Letras: A inserção da mulher na ABL, na perspectiva do feminismo no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ, 2018.

[10] MAGALHÃES, Maria do Socorro Rios. O romance Através da Vida. Teresina, APL / SEDUC, 2024.