O morro da casa-grande

ENTREVISTADO:

Dílson Lages Monteiro

Adotado em várias escolas, o romance O morro da casa-grande, cuja primeira tiragem foi realizada em 2009, suscitou curiosidades nos alunos da Escola Cidadão Cidadã, uma das instituições que trouxe o livro como leitura obrigatória em 2014. O estudante Marcos Barbosa conversou com o professor e escritor Dílson Lages sobre o romance. Leia a entrevista na íntegra. 

Marcos Barbosa - O que o levou a fazer este livro?

Dílson Lages - Cresci ouvindo pessoas próximas a mim lamentarem a demolição da igreja da cidade em que nasci, Barras do Marataoã, aqui pertinho de Teresina, a 122 quilômetros, ao Norte. A cidade é um dos núcleos de colonização do Piauí e teve grande influência política durante o  final século XIX e nas primeiras décadas do século XX, sobretudo a partir da República Velha,  quando em função do prestígio político adquirido pela família Pires Ferreira-Castello Branco na Guerra do Paraguai, vários barrenses ocuparam postos de destaque no cenário local e nacional.

Pois bem, voltemos à igreja. Barras nasceu em torno desse templo e cresceu, em sua fase inicial, impulsionada pela fé e pelas fazendas de gado bovino. Como muitas cidades, Brasil afora. A primeira capela, em fins do século XVIII, já existia onde hoje há a atual igreja, no mesmo lugar do templo demolido em 1963,  na  sede da antiga fazenda Buritizinho, hoje o núcleo central da cidade. Veja que a fé é um elemento importante da identidade dessa gente. A igreja foi construída, quer dizer, esteve à frente da construção dela, o coronel José Carvalho de Almeida, patriarca de uma das mais antigas famílias radicadas na região de Barras.

Foi essa igreja que motivou o romance, a antiga igreja demolida em 1963; demolida a partir de vários interesses políticos (inclusive do interesse político-religioso, uma  vez que no Brasil inteiro havia uma reação ao protestantismo e o Concílio Vaticano orientava mudanças, entre elas, a alteração física da frente de igrejas para o nascer do sol). Também influenciou na derrubada a falta de consciência política da comunidade. Em várias regiões do país onde esse tipo de ideia foi ventilada, a comunidade reagiu e templos antigos continuam de pé. Em Barras, não. A velha igreja ruiu a machadadas.

Durante muitos anos, anotei histórias sobre o episódio e pesquisei sobre o assunto. Minha intenção era construir isso pelo viés da história, mas achei que poderia ser mais interessante abordar o tema pelo ângulo da ficção, valendo-me de minha experiência como poeta. Assim o fiz, misturando história, poesia e memória. Pude não apenas reconstruir os episódios em torno da demolição da igreja, mas reproduzir os hábitos e costumes de Barras em meados do século XX, com ênfase no conflito entre a vida rural e a urbana, assim como na abordagem de temas como a infância, a desigualdade social e a destruição do patrimônio histórico e arquitetônico. Aliás, por lá, não se destruiu somente a igreja centenária, mas também, entre tantos patrimônios, os clubes sociais, a cooperativa de produtores, o teatro  e vários símbolos de convivência comunitária; muitos símbolos do passado - o que ainda resta - continuam até hoje a serem demolidos, num claro interesse de apagar as tradições e eliminar qualquer referente relacionado à antiga Barras. O mais absurdo, além da igreja, foi a destruição do Cemitério da Confraria de Nossa Senhora da Conceição, um dos mais antigos cemitérios do Norte piauiense, demolido pela ignorância e descaso com sua própria gente.

 

Marcos Barbosa - Quais foram as suas principais obras?

Dílson Lages - Marcos, publiquei treze livros, passeando por vários gêneros. Do livro didático ao conto infantil. Escrevi além de prosa de ficção,  livros de poemas, seis ao todo; livro de crônicas e entrevistas, livro de ensaio acadêmico. Se me perguntar de qual mais gosto, vou responder o que a maioria dos profissionais da palavra responderia: o último livro, ele sempre marca, embora nem sempre tenha a mesma qualidade técnica de outros já publicados. Gosto muito de O morro da casa-grande. Eu gostaria de ter escrito aquilo lá, e consegui escrever, embora já tenha cogitado acrescentar mais elementos à narrativa. Atualmente, prende minha atenção o novo livro de poemas, Ares e lares de amores tantos, que venho divulgando diuturnamente, sempre que o tempo me permite. A lista de livros e comentários críticos de gente de todo o país, você confere em www.portalentretextos.com.br. Uma pequena observação, considero-me sempre o autor em formação. Uma obra sempre pode melhorar.

 

Marcos Barbosa - Como é o lugar onde você nasceu?

Dílson Lages - É uma cidade de paisagem abençoada pela natureza. Vivi ali, entre banhos de rios – o marataoan ficava quase em meu quintal, porque estava a apenas cem metros de casa, ao se dobrar uma esquina. É uma imagem sempre viva em minha memória. A cidade pequena, de casas com janelas e portas abertas o dia inteiro, de cadeiras nas calçadas, festas religiosas apaixonantes e, principalmente, de fazendas ricas de miragem, beijus de farinhada, banhos de açude e estórias de trancoso em que toda criança acredita.

Como era bom esse tempo. Barras, a de minha infância, na década de 70 e inicio de 80, era praticamente o centro da cidade e, além do Marataoã, o Longá de águas caudalosas, onde todo cuidado era pouco para não ser tragado pelas correntezas que se chocavam nos paredões de pedra, hoje quase todos demolidos pelos mercenários e pela inoperância da elite política.

Barras era a barragem e a ponte do pesqueiro, de onde meninos pulavam em épocas de inverno, era as pracinhas do centro; também os bares para gente grande,  a eterna confusão da política e da cachaça, sempre abundantes por lá. Mas era um lugar de respeito mútuo e tradições religiosas que começavam a desaparecer sem que o menino que fui desse conta.  

Embora pobre em muitos sentidos, inclusive de infraestrutura, tinha uma beleza que fortalecia as tradições adquiridas na República Velha, pela força principalmente do Marechal Pires Ferreira e dos diversos grupos que se constituíram em torno do prestígio político que ele e o irmão, o senador Joaquim Pires e correligionários, mantiveram por mais de quarenta anos. Bem diferente da Barras de hoje, desprestigiada, onde campeiam problemas sociais numa grande extensão urbana em que se avolumam os mesmos problemas das favelas das grandes cidades.

Não se pode mais estar na calçada e tudo se mercantilizou. Da política à religião. É uma cidades brasileiras que mais exporta trabalhadores escravos para as mais diversas partes do País. Minha Barras era outra: a do sonho e a da esperança que habitava em meu coração de menino. Ainda assim, esse lugar maltratado é parte de meu coração e sofro também com as suas dores e, especialmente, com a minha pequenez diante delas. Tenho apenas a palavra, embora quem tenha a palavra, a palavra desprovida de interesses particulares, nunca esteja sozinho.

 

Marcos Barbosa - O que mudou na Igreja de antigamente para a Igreja atual?

Dílson Lages - Marcos, tudo mudou. Não apenas a posição do templo religioso. A igreja agora está de frente para o nascer do sol. Peço que releia os capítulos “O altar-mor da matriz de Barras” e “Cristo em pó”. Eles falarão  melhor por mim; assim como veja atentamente as fotografias da antiga igreja e a de agora reproduzidas a seguir.

 

Foto de 1957

 

 

igreja em 1959

 

 

Dezembro, no Chão de Nossa Senhora

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Marcos Barbosa - A que tipo de público é dirigido esse livro?

Dílson Lages - Quando estava escrevendo tive o cuidado de utilizar vocabulário simples, mas como há uso intenso de figuras de linguagem a leitura não é tão simples assim. Apesar disso, creio que ele está acessível ao adolescente. O interessante é que ele mexeu mais com pessoas que tiveram origem rural. Elas se encontraram em capítulos como “A franga pedrês” ou a “Cidade de águas nas veias”. Creio, porém, que o livro se presta mais àqueles que não tiveram a experiência agrária retida em suas retinas – é uma forma de descortina um mundo novo, quando se está lendo sobre a orientação de um professor habilidoso e identificado com os temas do livro. Para o crítico literário e historiador Manoel Hygino, em artigo escrito para o jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte, O morro da casa-grande “é um trabalho interessante, a que não faltam vocábulos praticamente não usados no Sudeste e no Sul, expressões bem próprias do interior piauiense. Mas um texto agradável, com uma narrativa que faz sentido e tem propósitos claros, entre os quais o de proteger tanto quanto possível o legado das velhas gerações.”

 

Marcos Barbosa - Você é poeta, cronista, professor, editor e autor. Seu lugar de origem ajudou você a se tornar a pessoa que você é hoje?

Dílson Lages - Sem dúvidas que a paisagem social e humana de onde vim desempenha um papel importante na construção de minha obra. Minha literatura é em parte o lugar em que nasci, mas ela representa bem mais que isso: é o documento e a linguagem das pequenas cidades, independente da localização. Acredito que no que escrevo de regional há uma intenção universal, a condição humana na verdade constitui o meu grande norte para escrever. E a linguagem, que longe de ser simples retórica, como querem crer  os reacionários ao meu estilo de linguagem burilada para atingir a dimensão estética, é linguagem que toca as profundezas da imaginação e movimenta os sentidos para reflexões que vão da indignação à felicidade. No dizer do crítico literário e romancista Rogel Samuel, “é um estilo clássico”. Faço aqui uma ressalva - muito devo em minha formação como ficcionista a esse doutor, aposentado da UFRJ, com quem aprendi de fato a ser o aprendiz de ficcionista que sou.

Voltando mais objetivamente à sua pergunta, minhas reservas literárias são em parte o lugar em que nasci, mas se eu tivesse ficado por lá jamais seria esse pessoa fascinada pela palavra. Talvez estivesse, dadas as poucas oportunidades de vencer por lá, ainda hoje visíveis nos interesses da elite política, atrás de algum balcão de loja, o que é dignificante, sem dúvidas, mas numa vida restrita aos interesses apenas da sobrevivência diária. Agradeço a Deus e aos esforços de meu pais, modestos funcionários públicos (tenho nome de aristocrata, mas minha origem mais imediata é humilde), meu pai era um simples “guarda da Sucam” e minha mãe, uma auxiliar de enfermagem; os esforços gigantescos para me bancarem dignamente em Teresina, e aos tios que me abrigaram por quase uma década. Quando me lembro dos esforços de meu pai, me dá um vontade enorme de abraçá-lo e uma saudade que não tem tamanho. Ele sabia disso, embora não tenha feito ás suas vontades de ter estudado Direito. Exerço o Magistério desde adolescente. Aos 17, eu já estava na sala de aula. Sempre com muita paixão pelo que faço.

Os meus esforços foram também tão importantes como as reservas poéticas que trouxe do lugar em que nasci e dos esforços de meus pais. Tenho feito da tentativa de me aprimorar no exercício da palavra uma atividade obstinada e assídua, ao longo de vinte e cinco anos. Com tanto treino e dedicação, que se estendem da leitura à prática, o resultado tem me agradado. Espero crescer mais e mais no domínio do discurso literário.

 

Marcos Barbosa - O título do livro tem alguma inspiração na sua vida?

Dílson Lages - O título tem uma relação direta com a fazenda onde passei parte de minha infância, a cinquenta quilômetros de Barras, na divisa de Barras do Marataoã com Nossa Senhora dos Remédios. O morro é bastante simbólico, ao tempo que remete à ideia de proteção e controle, também expressa a desigualdade social. “A cidade, como o morro”. A igreja construída num morro. No fundo, mais do que uma casa no morro, a própria igreja, ou melhor, a sua ruína representam as mudanças de referentes numa cidade que apaga o seu passado e perfura sua memória.

 

Marcos Barbosa - O morro da casa-grande foi o livro que mais marcou a sua carreira?

Dílson Lages - Diria que foi um livro de que gostei de escrever. Espero que outros tenham o mesmo sentido.

 

Marcos Barbosa - De todos já escritos por você, qual deles exigiu mais esforço?

Dílson Lages - Cada livro guarda sua estória particular. Penso que todos oferecem o mesmo esforço, o de transformar a vivência e seus significados em linguagem de muitos sentidos. O esforço é o mesmo .No caso de O morro da casa-grande, o fiz de maneira muito disciplinada, postando capítulos quinzenal ou mensalmente em Entretextos, e isso aliviou o meu esforço da reescritura, uma vez que eu ia refazendo a cada postagem.

 

Marcos Barbosa - Na época em que se passa o livro, existia alto índice de desigualdade social?

Dílson Lages - A desigualdade de ontem é mesma de hoje, guardadas as devidas proporções – persistem os mesmos mecanismos de dominação dos mais humildes. Mudaram apenas as ferramentas da opressão. As oportunidades de resistência ou de superação desse cenário na década de 50 e 60, porém, eram sem dúvidas bem menores, porque não dispúnhamos dos mecanismos jurídicos de hoje. Vivia-se uma vida agreste. De pouco consumo, é verdade – sequer energia elétrica e água encanada se possuía na maioria das casas do Nordeste, o que diria de oportunidade de projeção e abandono da miséria.  

Vivemos em um novo contexto, com alguma “cobertura social” distante ainda do ideal, mas facilitadora da organização em torno de interesses de categorias trabalhistas. A profissionalização chegou até mesmo ao campo; infelizmente persistem as desigualdades e a dependência econômica, materializada em novos instrumentos, muitos dos quais igualmente perversos. Ainda assim, os mais desfavorecidos bebem água gelada, assistem à tevê, ouvem rádio, colhem água da torneira, falam ao celular etc.