Lima Barreto, Taumaturgo e a rua da infância

[Dílson Lages Monteiro]

Ruas bem que poderiam ser apenas caminhos de passagem... Acontece que, por onde passamos, fica também um pedaço de nós: um modo de a natureza se organizar, um modo de olharmos, um modo de o homem se relacionar com o espaço urbano. Um modo de existir. Um modo de transformar.

Transporto-me para a pequena cidade da infância e pré-adolescência. Vivi meus treze anos iniciais em uma rua de nome Taumaturgo de Azevedo. Tenho vaga lembrança da chuva escorrendo pela areia, aí pela década de 1970, quando os paralelepípedos se restringiam a um punhado de ruas centrais mais ligadas ao entorno da igreja. O pensamento revive outras chuvas velozes, já na rua de calçamento, despejando água para além da cerca de madeira onde ela esbarrava. Para além, onde se formava grande lagoa em quintas do coronel Alcides. Por onde se aventurar era certeza de cruzar com bichos peçonhentos e muito lixo.

Surgiu o dia em que puseram a cerca ao chão. Era uma vez um curral. Veio o trator. Dividiu um campo de futebol ao meio. Eliminou os resquícios da antiga quinta. Ampliou os quatro quarteirões por traz da igreja matriz em longo estirão de aproximadamente meio quilômetro. Retidão que dá alegria ver. O progresso chegava. Casas, calçamento, água encanada, luz. Ainda assim, parte da lagoa borbulha o coaxar de sapos nas invernadas até que em definitivo seja aterrada para sempre e as águas do céu procurem um caminho natural para chegar ao rio para onde se atiram.

Certo tempo, descobri que além de rua Grande, a primeira designação, também se chamou Getúlio Vargas. Em 1932, ao nomearem novos logradouros e mudarem os nomes de outros, entre os quais, a rua paralela ao rio Marataoã, que de José Antônio Rodrigues, primeiro presidente do Conselho Colonial da Vila de Barras do Marataoã, passaria à denominação de David Caldas. Homenagem à grande expressão do jornalismo piauiense no século XIX, igualmente nascido em área então correspondente ao histórico município.

Uma pequena digressão. Há alguns anos, conheci o que restou da fazenda Olhos D’água dos Azevedo, em área que compreendia a antiga Barras do Marataoã. Em publicação específica sobre essa fazenda centenária, li que Taumaturgo descendia de antigo ramo dos Castello Branco ali radicado. Necessito ainda estabelecer as associações devidas... Cresceram minhas hipóteses em saber em que região da antiga vila de Barras ele vivera os primeiros 14 anos de vida, antes de seguir a carreira militar.

Antepassados seus estavam entre os fundadores do Retiro da Boa Esperança, hoje o município de Esperantina, no Piauí. Curiosamente, descobri que é da mesma gente do famoso jornalista David Caldas, conforme me relatou recentemente a historiadora Teresinha Queiroz, em resposta a uma desconfiança genealógica minha sobre a ligação de ambos e à suposta localização da fazenda Mourrinhos, onde nascera o notável jornalista, e ainda incógnita e imprecisão nos tempos correntes. Aliás, a vivência e as memórias de muitas figuras de trajetória cultuada pelo chão do rio Marataoã consta apenas do registro de nascimento e de suas projeções fora da Terra-Berço.  Mas isso é conversa para outra prosa.

Pois bem. Taumaturgo tornou-se um homem público notável na República Velha. De expressão nacional. Na política e no exército. Galgou o posto de Marechal. Governou o Amazonas e o Piauí. Fundou cidades naquele estado. Projetou-se como importante figura na definição do território brasileiro ao Norte. Tornou-se até personagem de romance. Uma rua no lugar onde nasceu, onde quase nada se sabe coletivamente sobre a história de superação dele, ainda que justo reconhecimento aos feitos do militar, diz quase nada para o muito que alcançou como homem para além de seu tempo. Entre essas conquistas, a fundação da Cruz Vermelha brasileira.

Em passeio pelas crônicas de Lima Barreto, crítico mordaz da destruição arquitetônica do Rio de Janeiro Colonial, figura um Taumaturgo, porém, bem diferente do que aparece na história oficial. Lima se celebrizou como um inquieto literato, que foi a fundo nas contradições da sociedade brasileira e, há mais de um século de seus livros, as páginas de resistência escritas por ele continuam tão atuais quanto ao tempo em que a tinta as cravou em papel. Estão aí “Os Bruzundangas” a dizerem que a mesquinhez das elites nacionais é a mesma de um século atrás.

Em extensa crônica datada de 10 de agosto de 1919, em humor que lhe é próprio, Lima questiona a atuação da entidade benemérita fundada e dirigida por Taumaturgo. Inquiri, sobretudo, a grandeza da construção da sede da Cruz Vermelha brasileira e as boas intenções de seu mentor:

“O senhor Taumaturgo de Azevedo, que disputa ao Senhor Câmara o número de ‘crachás’ universitários: que é doutor em uma porção de coisas, o senhor Taumaturgo de Azevedo devia saber como todos sabem, que, atualmente, é aconselhada pelos higienistas de todo o mundo a construção de hospitais em pavilhões nivelados. Os motivos são óbvios e estão ao alcance da mais mediana inteligência que tenha a mais mediana cultura. Como é então que o Senhor Taumaturgo (será por causa do nome?) quer fazer um hospital moderno ao jeito dos antigos?”

Mais poderia anotar sobre o rosário de ironias de Lima, mas prefiro ficar com a imagem de Taumaturgo reverenciada. Bairrismo? Ingenuidade? Talvez. Prefiro a visão de um Taumaturgo que se confunde com a da rua Grande da Cidade Natal. Sempre a imaginei maior do que realmente o é. Prefiro ficar com a rua sinestésica. A mesma sobre a qual à distância versejou o romancista e crítico Rogel Samuel: rua grande/ em Barras do Marataoã/no Piauí, minha paixão distante/Rua Grande/e deserta/ao fundo a Matriz/os muros, as casas/desertos/rua larga e grande/batida pelo sol pelo/silêncio do sol/seguida pelos/passos/silenciosos passos/dos nossos antepassados/ilustres/dos nossos personagens/Fileto, Taumaturgo/ó memória nativa/ó glória que não se apaga/traços/passos/na rua grande/da história.

Dílson Lages Monteiro é autor, entre outros, de O sabor dos sentidos.