Leitura da crônica "Dois livros, dois leitores"

           

                    Carlos Evandro M. Eulálio*

A principal matéria-prima para a crônica são as relações humanas. O modo como as pessoas se amam, se enganam, se aproximam ou se afastam num ambiente social definido. Ou qualquer outra coisa.

 

                                                         Luís Fernando Veríssimo

 

                             

Inicialmente, chamo a atenção para estas palavras de Dilson Lages, no prefácio da obra Olhar de Casca de Banana, de autoria do admirável escritor Chagas Botelho: “Nas crônicas de Chagas Botelho, o leitor encontra uma voz que anuncia, com frequência, que a observação consiste na matéria prima de sua escritura. [...] Um dos focos das crônicas são os tipos humanos caricatos vislumbrados com ternura”. Essa constatação constitui ponto de partida e subsídio indispensável ao estudo desse gênero de texto, habilidosamente trabalhado por Chagas Botelho em sua obra.

Entre as crônicas reunidas no livro Olhar de Casca de Banana, selecionamos para leitura a narrativa Dois livros, dois leitores, que relata um acontecimento trivial, comum em décadas passadas, qual seja o hábito de ler livros e jornais em transportes coletivos, durante longo percurso, conforme alude o narrador em primeira pessoa, nesta passagem: “Embarco no ônibus da linha Santa Maria, via shopping, rumo à repartição [...] Começo então a ler as últimas páginas de Hospício é Deus, de Maura Lopes Cançado. [...] Cinco minutos depois, de soslaio, vejo a mulher tirar algo da bolsa a tiracolo. Mexe e remexe até levar a lume, a superfície, um livro. [...] Trata-se de A Culpa é das Estrelas, John Green.”

O primeiro livro, do gênero diário, narra experiências vividas pela autora em um hospício. O segundo, do gênero romance, trata do amor entre dois jovens que também vivem situações complicadas. É pertinente a semelhança temática dos dois textos citados da autoria de dois escritores que possuem diversa formação autoral, cujos livros são lidos, agora, por dois leitores, possivelmente de hábitos de leitura diferentes. Daí a observação do narrador: “E ficamos ali, eu e ela duelando na leitura em plena movimentação desconcertante da condução”. Do ponto de vista do narrador, as personagens da crônica vivem experiências análogas.

A crônica, como texto literário, fala sobre a vida de todos nós. Espelha verdades e situações comuns a todo ser humano.  Aristóteles, em sua Poética, define literatura como imitação das ações humanas, isto é, imitação da vida. Quando lemos um conto, uma crônica ou um poema, neles descortinamos a imagem de nossas ações e de nossas atitudes ali refratadas. Na crônica de Botelho, vemos que a observação, a memória e a imitação suscitam no leitor reflexões sobre situações vividas, igualmente como aquelas vivenciadas pelas personagens. O leitor é levado para dentro do texto. Isso lhe permite revivenciar uma experiência que também viveu ou poderia ter vivido. Lembro a época, quando eu morava no Rio de Janeiro, na década de 1960. Sempre que me deslocava em coletivos de casa para o trabalho, levava comigo um livro ou um jornal, e, de tão concentrado na leitura, quando não descia fora do ponto, esquecia um guarda-chuva no lotação ou no ônibus. Tempo, espaço e personagens mimetizam o cotidiano e a realidade do leitor. São esses pequenos detalhes da vida cotidiana, expostos nas crônicas de Botelho, que fascinam e aprisionam o leitor em suas páginas, do começo ao fim da narrativa, por meio de um estilo de texto conciso, simples em seu arcabouço estrutural, com situação inicial, desenvolvimento e desfecho. O narrador, distante das questões sociais e dos conflitos pessoais, concentra o foco de seus relatos num flagrante do cotidiano com sutileza e humor, como no enunciado final da crônica: “...e eu que pensei que fosse o último dos moicanos a exercer a leitura numa lata de sardinha.”    

 

*Carlos Evandro Martins Eulálio é professor, crítico literário e membro da Academia Piauiense de Letras.

 

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. As Cem Melhores Crônicas Brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p. 27

BOTELHO, Chagas. Olhar de Casca de Banana. 1a.ed. São Paulo: UICLAP, 2022.

https://kdfrases.com/frase, acessado em 4/4/2023.