[Paulo Ghiraldelli Jr]

O estudante de filosofia aprende que para ganhar uma bolsa ele precisa saber argumentos técnicos do ceticismo, e como negá-los ou escapar deles. Alguns professores o convidam para se transformar em um expert nesse trabalho de combate ao ceticismo. Ele se engaja nisso e vai da iniciação científica ao doutorado “trabalhando com o ceticismo”. Faz uma vida agitada de concursos e preocupada em agradar seu orientador. Aos quarenta anos, já meio calvo e com algumas contas para pagar, ele tem seu primeiro emprego na universidade e, então, pergunta ao seu orientador se ele pode já se considerar filósofo. Seu orientador diz um sonoro “não”. Diz que ele foi treinado para ser um expert em ceticismo. E assim, este agora professor, mas eterno orientando, volta angustiado para casa. Vai preparar a “aula de amanhã”, na qual tentará achar algum aluno que queira também ser um expert em ceticismo. A fila anda, mas na filosofia atual, só se repete.

Esse jovem de quarenta anos está em sua casa frustrado, ansioso e, enfim, perturbado. Ele é um profissional do ceticismo. Não é filósofo. E ele não é um cético. Pois se ele está perturbado, ele não conseguiu ser um cético. Talvez nem mesmo tenha aprendido o ceticismo!

Os céticos não foram epistemólogos. Os céticos não quiseram criar questões filosóficas para estudo. Tanto quanto todas as outras escolas de filosofia do mundo antigo, em especial as do Helenismo, como o epicurismo e o estoicismo, o ceticismo tinha um objetivo prático. Seu lema era “libertar-se da perturbação”. Ou seja, como todas as outras escolas gregas, o objetivo do ceticismo era a eudaimonia, a felicidade enquanto prosperidade. Os estóicos lutaram para se livrar da frustração e os epicuristas fizeram o mesmo contra a ansiedade. Essa medicina da alma, no caso do ceticismo, tinha de ser ampliada. Eles, céticos, quiseram se livrar não de males específicos, mas de toda e qualquer perturbação. Qual a perturbação essencial e que nos leva a ficar aqui e ali “encucados”? Uma só: nós afirmamos ter conhecimento e, portanto, saber do verdadeiro e do falso, do certo e do errado. Uma vez assim, eis que temos de honrar tais verdadese certezas. Temos de lutar por elas. A perturbação se amplia. Os estóicos e os epicuristas acreditavam poder dizer que tinham conhecimento. Os céticos disseram: pensando assim, vocês vão continuar preocupados e, então, perturbados. Livrem-se disso. Ou seja, livrem-se dessa posição dogmática. Vocês não podem ter segurança no que afirmam saber, pois essa segurança é uma tolice.

Assim, o que os céticos faziam era escapar da disputa sobre filosofia prática, no campo do certo e do errado, e escapar da disputa em filosofia teórica, no campo do conhecimento. Entravam para o estado de epoqué, isto é, de suspensão dos juízos. Depois, davam um passo para o estado de ataraxia, a suspenção das ações. Eis que o mundo da liberdade das perturbações estava aberto. Isso tudo se parece muito com a paz oriental, não é verdade? Pois há quem diga que houve lá uma influência dos “filósofos nus” indianos sobre alguns céticos. Mas, talvez eles jamais tenham precisado de qualquer influência externa. Os megáricos, na própria Grécia, pensavam coisas assim, como as que depois caracterizam a escola cética.

Mas como os céticos podiam colocar em dúvida os conhecimentos sobre o mundo que, enfim, estóicos e epicuristas afirmavam possuir, e que vinham de suas sensações e percepções?

Ora, os céticos, tanto os da Academia de Platão, após seu quinto diretor, ou os que aprenderam algo de Pirro de Elis, tinham um método bastante simples para homenagear a dúvida e se livrar da prisão da perturbação que o conhecimento pode trazer, dado que o conhecimento nos compromete demais. Qual método?

A idéia básica do cético é era a de que para todo enunciado apresentado como um saber, é possível colocar um outro enunciado contrário que lhe causa dificuldade e o nega, sendo que daí por diante tirar uma conclusão final torna-se algo difícil, talvez impossível. O caso das sensações (e mesmo das percepções) é bem significativo. Posso pegar um ovo e, diante dele, dizer: “Este é o meu ovo”. É verdade. Acredito então ser dono de um ovo – aquele ovo que está na minha mão. Então, eu entrego esse ovo para a Fran que o guarda numa caixa. Depois, quero comer o ovo e o peço de volta para a Fran, que prontamente me entrega um ovo. O ovo parece o mesmo, mas não posso dizer se ele é o mesmo, pois eis que a Fran mostra que na caixa havia mais um ovo igual ao primeiro, e agora eu não poderia afirmar diante do que tenho em mãos “este é o meu ovo”. Poderia ser outro, poderia ser o ovo da Fran. Ora, caso a Fran nunca tivesse me dito que havia dois ovos na caixa, eu passaria uma vida toda enganado, sem nenhum conhecimento válido sobre o que afirmei. Assim, se posso sempre estar enganado, não devo me preocupar. Suspendo o juízo “este é o meu ovo” e, se a Fran não gritar, eu como o ovo e pronto. Para quê ficar perturbado?

O eterno orientando bolsista, jamais poderá exercer esse ceticismo. Ele vai ficar perturbado em ver esses argumentos, olhar a lógica deles, etc. Vai passar uma vida perturbado e, uma vez expert em ceticismo, terá de se contentar em nunca ter podido ser cético e, assim, talvez nem mesmo filósofo. Ele terá sido um discípulo de seu orientador, jamais um discípulo de Pirro de Elis.

© 2012 Filósofo Paulo Ghiraldelli Jr., 54, filósofo, escritor e professor da UFRRJ