Anotações sobre a crônica de Chagas Botelho

* Dílson Lages Monteiro

 

Machado de Assis, cronista dos mais talentosos entre nós, se não o mais talentoso, explicando a origem da crônica e sua relação com o jornalismo, traduziu com êxito, sem meias-palavras, o que define com propriedade o gênero:

 

“O folhetim nasceu do jornal, o folhetinista por consequência do jornalista. Esta íntima afinidade é que desenha as saliências fisionômicas da moderna criação. O folhetinista é a fusão admirável do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo”.

 

Acrescenta Machado:

“Efeito estranho é este assim produzido pela afinidade assinalada entre o jornalista e o folhetinista. Daquele cai sobre este a luz séria e vigorosa, a reflexão calma, a observação profunda. Pelo que toca ao devaneio, à leviandade, está tudo encarnado no folhetinista mesmo: é capital próprio”. (1)

 

A crônica seria, pois, conforme diz em estudo sobre o gênero Marcus Vinicius Nogueira Soares, pautado nas palavras de Machado de Assis, e ao citar artigo do pesquisador Wellington Pereira, “ a arte do útil e do fútil”. (2)

 

Com efeito, o exercício da crônica é atividade para observadores perspicazes. Exercício para gente incomodada com sons, cores, gestos. Exercício para quem anda permanentemente interessado em conectar-se ao seio social sem perder o sentido exato da noção de individualidade. A crônica, pois, configura-se como atividade sublime: por isso, encanta-nos, a nós, brasileiros de todos os tempos, pela capacidade de, seja pelo humor, seja pelo lirismo, seja pela crítica social, comover-nos de uma maneira única.

 

De Alencar a Cony, é um gênero genuinamente brasileiro, que nos surpreende, também, ao nos apresentar nomes vocacionados para o labor e as exigências requeridas por essa forma de manifestação literária: concisão, capacidade de reinterpretar o banal em novas semioses, humor, reflexão, lirismo. Surpreende-nos como o faz agora, ao revelar em livro os textos de Chagas Botelho, radialista há várias décadas, nascido tal qual eu nas ribeiras do rio Marataoã, no Piauí; tal qual a mim, com formação na área de Letras.

 

Nas crônicas de Chagas Botelho, o leitor encontra uma voz que anuncia, com frequência, que a observação consiste na matéria prima de sua escritura. Daí, a metalinguagem, de maneira subliminar, vai constituindo-se sob a forma de um enunciador que, buscando os significados, manifestos tanto em fatos como em sensações, afirma-se como um observador; capaz de esquecer, por exemplo, por completo, o tempo presente, a fim de mergulhar no tempo da enunciação.

 

Assim procede em textos como “A mulher sem pressa”. Nele, a inquietação da espera de atendimento médico em clínica transforma-se em motivo para profunda constatação sobre a serenidade, o momento presente e sua percepção, materializados nos detalhes do espaço físico, contrários à pressa do paciente pelo atendimento:

 

“Não apreciamos o branco viginal das paredes desses ambientes de saúde. Nem o design moderno nem sempre confortável das cadeiras Charles Eames. Chegamos a desprezar a robustez simpática dos garrafões azuis de água mineral e a sofisticação plástica dos copos descartáveis ao final do corredor. Não nos sobra nenhum giro do relógio para apreciação de banalidades”. A pressa contrária à mulher, “mansa como água de poço”; a mulher tal qual a arte: “Calmamente natural”.

 

Em diversas crônicas, Chagas Botelho demonstra habilidade em associar, espontaneamente, a observação do cotidiano, sobretudo de situações do universo do desejo, a reflexões inusitadas, com lirismo leve, cheio de graça. Às vezes, porém, de um cinismo que reafirma o estereótipo, no bom sentido, do malandro que há na alma do brasileiro; um cinismo que faz lembrar Nelson Rodrigues, em várias passagens de crônicas.

 

Um dos focos das crônicas são os tipos humanos caricatos, vislumbrados com ternura. O trabalhador braçal, por exemplo, que transporta um armário, retratado em texto no qual revela profunda admiração pelo esforço em carregar o móvel ao ombro. Entre os tipos humanos, está o apaixonado incondicional, a partir do qual o amor define-se em concepções integradas à natureza humana: cumplicidade, cuidado, segurança. O olhar do enunciador volta-se, ainda, para costumes; entre eles, um bem piauiense, de sabor inconfundível no paladar do povo: o consumo de cremosinho, aquela espécie de picolé, característico das plagas piauienses, pronto para saciar a garganta e o corpo da sede permanente em tempos de altas temperaturas.

 

No conjunto dos textos, Chagas Botelho mantém uniformidade no grau de literariedade e revela os esforços para a construção de um estilo já claramente definido, perceptível para especializados em literatura ou não. Um estilo em que a perseguição do coloquial, um dos traços fundamentais do gênero crônica, dá-se, ao mesmo tempo em que busca empregar procedimentos estéticos fora da esfera jornalística, por meio da utilização de tropos que são “ganchos frios”,  procedimentos para fisgar o leitor.

 

Assim, sentenças dizem mais do que querem dizer. Como em “A folha seca”, um dos momentos mais felizes do livro. Nessa crônica, a observação sobre a copa de uma árvore em frente a hospital é motivo para acompanhar o despencar de uma folha e sua finitude, motivo para traduzir a condição do morador da grande cidade, e no fundo o despertar do sentimento de compaixão pela brevidade de toda beleza.

 

Nas crônicas de Chagas Botelho abunda o humor. Ironias espontâneas, criadas com consciência do fazer literário, tornam um só objeto o plano da forma e o do conteúdo, como em  “Eu lavo as louças de casa” e “A tábua de passar”, uma clara desconstrução do machismo ainda vigente no tecido social. Escreve o autor no parágrafo introdutório daquela:

 

“Eu lavo as louças de casa. E isto me tem feito um bem danado. Nem sempre foi assim. Passou a ser quando me dei conta de que o negócio era terapêutico. Por isso, agora, faço questão de lavar as louças do café da manhã, do almoço e do jantar. De todas as tarefas domésticas que já me permiti fazer, a de arear panelas, pratos e talheres, de longe, é a que me causa maior bem-estar”.

 

Observemos o verbo empregado para designar o ato de limpar louças: arear. Antes de ser uma expressão tipicamente regional, traduz-se em palavra que leva ao riso, pela associação com o universo feminino e pela ideia subjacente de força física que a ação de limpeza, nessa palavra, encerra.

 

Assim, dirigindo-se ao leitor, em tom de ironia, como se houvesse algo de mais importante a realizar, usando de procedimento estético recorrente ao longo de diversas crônicas, o uso de analogias, o qual  se verte em frases de efeito, alicerçadas em situações do cotidiano, arremata a crônica:

 

“Se me dão licença, preciso comparecer a mais uma sessão de acupuntura e ventosa, digo, de lavagem das louças. A clínica ou consultório de relaxamento é a minha cozinha”.

 

Dílson Lages Monteiro é editor do Portal Entretextos, professor, autor de diversas obras literárias e membro da Academia Piauiense de Letras.