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Um banho de metáforas na poesia sensual dE Isaac Ramos

 
 
 
Rosidelma Fraga*
 
 
Isaac Newton Almeida Ramos, poeta mato-grossense, é autor de Astro por rastro (1988) e contribui com ensaios e artigos em periódicos científicos na categoria de crítico literário. Seus poemas circulam em revistas de divulgação de textos inéditos, tal como o “Caderno de poesia I” (2007) selecionado pela Revista Crioula, da Universidade de São Paulo, onde o autor recentemente defendeu a Tese de Doutorado Vanguardas poéticas em permanência: a revalidação de Wlademir Dias-Pino e Silva Freire (2011).
O texto que ora se descortina parte de uma recepção de poesia em seu estado nascente (VALÉRY, 1991), evocado no olhar para o texto e para o ser letral (o poeta) e não para o eu-empírico, aquele sujeito com nome, certidão de nascimento, estado civil e endereço. Sendo assim, eximo-me de todos os laços e admirações que sempre tive pelo autor como meu ex-professor de literatura na Universidade do Estado de Mato Grosso e inclino-me para a fruição estética do texto em seu prazer de leitura, conforme sugeriu Roland Barthes em O prazer do texto, ao dirigir-se ao criador e dizer: “o texto que escreves deve te dar a prova que me deseja. Esta prova existe: é a escritura. A escritura é isso, a ciência dos deleites da linguagem, seu kamasutra” (BARTHES, 2002, p.13-14).
O poema CARDÁPIO LÍRICO, tão próximo de noemas, provoca o deleite orgasmático da linguagem que saboreamos na semiologia francesa de Barthes. Mais do que isso. O poema marca visualmente o leitor na imagem plástica dividida em quatro eixos basilares da metáfora: poesia/degustação, poesia/aperitivo, poesia/embriaguez e poesia/canção:
 
 
 
CARDÁPIO LÍRICO
Sirva-me tua concha molhada de versos
Sirva-me um verbo lambuzado de gestos
Sorva-me em gotas como delírios poéticos
Embriaga-te com lírios
Enquanto tocas liras inconfessas.
(RAMOS, 2007, p. 1).
 
 
 
À moda da casa poética, o eu-lírico não se serve somente do CARDÁPIO LÍRICO, o poeta senta-se à mesa e convoca a própria poesia ao ofício de seu fazer lírico. Adornado pelo encadeamento visual, gestual e poético, Ramos celebra o poema como uma sugestão e um convite sensual ao erotismo na/da poesia: “sirva-me um verbo lambuzado de gestos”. Lambuzando-se das insinuações do verbo, o eu-lírico intensifica seu desejo (fome e sede) de poesia no terceiro verso: “sorva-me em gotas como delírios poéticos”.
Curiosamente, a veia erótica é alusiva. Ela realiza-se na busca pela poesia nos três primeiros versos, enquanto que nos dois últimos, a poesia não é o objeto seduzido e sim o objeto da sedução, tendo em vista a mudança da primeira para a segunda pessoa. Há um “tu” na voz do sujeito lírico: “Embriga-te com lírios/Enquanto tocas liras inconfessas”.
O cardápio lírico isaacnewtiano, ao ser e estar servido ao leitor, também se completa com a sensibilidade aliada ao requinte da lira e de seu universo sagrado, rememorando o sublime da própria arte desde o surgimento da poesia lírica na Grécia Antiga, ao mesclar o canto da poesia ao som do instrumento lira.
Na construção do lirismo metafórico, o poeta funda a sensualidade saborosa da metáfora amalgamada à figura feminina que é substituída pelos substantivos e adjetivos: “nota solta”, “carícia frouxa”, “gota louca” no poema DOCE METÁFORA:
 
DOCE METÁFORA
O teu canto é uma nota solta
O teu grito uma carícia frouxa
O teu pranto uma gota louca
Mas o que mais admiro em você
É esse incrível sabor de metáfora.
(RAMOS, 2007, p. 1).
 
 
 
Na poesia de Ramos, o poético é instaurado em forma de canto e na dupla chama da metáfora. Esta é poesia que se confunde com a mulher: “o que admiro em você (...) é o sabor de metáfora”. Por excelência as duas figuras se transformam em erotismo. Em DOCE METÁFORA o eu-lírico dissimula-se na tônica sinestésica. A audição e o olhar são os artifícios do poeta na tradução do signo poemático e emblemático. Há um sujeito lírico que ouve a sensualidade da poesia/mulher: “o teu canto é uma nota solta”, ao mesmo tempo em que é tocado pela sugestão da imagem: “o teu grito uma carícia frouxa”. Gradativamente, o leitor tem o canto, o grito e por último o pranto: “o teu pranto uma gota louca”. Esses três elementos, selecionados e combinados em metapoesia, equivalem aos subsídios da estética da recepção: poiesis, aisthesis e katharsis, os quais são fundamentais para a comunicação da obra literária e para a fruição estética do texto.
Diante disso, a linguagem da poesia de Ramos consegue provocar o vazio conceituado na teoria de Wolfgang Iser (1974), insinuando o querer dizer, pois a poesia diz e ela logo se cala nas lacunas que devem ser preenchidas pelo leitor. O poema não diz o que é e sim o que poderia ser, porquanto “o dizer poético diz o indizível. Não se produz o sem-sentido ou o contra-sentido e sim algo que é indizível e inexplicável, exceto em si mesmo” (PAZ, 1986, p.49). Em Ramos, o indizível parece figurar na zona da alusão da palavra e de seu jogo. O poema mencionado abre e fecha na metáfora. Enquanto Cardápio lírico se configura na sedução e na exploração erótica, Doce metáfora engana muito mais o leitor no trabalho com o signo poético.
Entrego ao leitor o ÚLTIMO POEMA:
 
 
 
ÚLTIMO POEMA
Sangro centelhas líquidas e dementes
Deságuo em uma mulher exposta ao seu holocausto
Absorvo-a em doses duplas de pecado
Sirvo-me no seu cálice rubro de recato.
Bebo-a em sacrifício silente
Mordo enseadas úmidas de metáforas
Extasio-me na tinta verde dos seus olhos tintos
Liquefaço-me em ritmos que a deliciam.
Gota a gota embebo-a em venenos
Retiro dela o mais puro antídoto
Que evapora nas dobras de um poema
Enquanto escrevo nela o dilema da minha poesia.
(RAMOS, 2007, p. 3).
 
 
 
Em ÚLTIMO POEMA a centelha do erotismo e da ambiguidade está na preferência por signos/verbos próximos da efemeridade e do transitório: “sangrar, desaguar, absorver, beber, embeber, liquefazer e evaporar”. E o mesmo sucede com os substantivos: “doses, cálice, tinta, gota, enseadas”. É o eu-lírico masculino o provocador de tal fugacidade e a figura feminina, evocada no poema, é a musa pura poesia que se sacrifica para servir o deleite insano do amado que por ela sangra e deságua: Deságuo em uma mulher exposta ao seu holocausto”. Ela expõe-se ao sacrifício acorrentado, mas a pureza subjaz em seu ato discreto e se funde na imagem sensual do eu - masculino que a absorve:Absorvo-a em doses duplas de pecado/Sirvo-me no seu cálice rubro de recato”.
Note o leitor que a ambiguidade, peculiar da literariedade, parece jogar com o leitor na escolha de oxímoro, pois, ao mesmo tempo em que essa mulher tem a imagem genuína e tímida, ela deixa ser servida/possuída em “seu cálice rubro”. Sob esse prisma, é possível associar o símbolo do pecado amoroso em doses da duplicidade da própria palavra que diz e se confirma pela escolha do adjetivo rubro (vermelho/fogo). Tal leitura pode ser válida se o leitor considerar a linguagem sensorial e sugestiva da metáfora. A respeito da linguagem sensorial proposta por Georg Bataille (1987), é presumível que, no interior das fendas da poesia erótica, o leitor perceba o simulacro da beleza que produz o inesperado, o inaudito e que permite o imperceptível. Portanto, a percepção da mulher/poesia no poema de Ramos, como provocadora da ânsia erótico-amorosa do eu-lírico, somente será oportuna a partir desse jogo duplo de sentido.
Primeiramente o poeta sangra, deságua, absorve e serve-se da mulher e seu cálice. Em seguida, bebe, morde, extasia e liquefaz: “Bebo-a em sacrifício silente/Mordo enseadas úmidas de metáforas/Extasio-me na tinta verde dos seus olhos tintos/Liquefaço-me em ritmos que a deliciam”. Neste quarteto de versos, o jogo da sedução funda-se na junção das enseadas úmidas de metáforas (orgasmo poético ou orgasmo/ejaculação?) e o deleite dos olhos verdes que são contemplados pelo eu-lírico e degustados pela poesia/mulher respectivamente.
Há no poema de Ramos a dança verbal da linguagem que parece ser, diz o indizível da fala poética. Segundo Octavio Paz (1994) o querer dizer é imagem e surge como o aparecimento do erótico, uma vez que há uma relação entre erotismo e poesia que pode ser explicada pelo fato de o primeiro constituir uma lírica corporal, ao passo que a segunda é uma erótica verbal encontrada na imagem que se transfigura pela percepção da metáfora:
 
 
[...]O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora. A imagem poética é o abraço de realidades opostas e a rima é a cópula de sons; a poesia erotiza a linguagem e o mundo por que ela própria em seu modo de operação, já é erotismo. (PAZ, 1994, p. 12).
 
 
Nos últimos versos, o poema parece ser dissecado pela poiesis e o ser masculino atinge o poder da sedução. Ele seduz e é seduzido ao se entregar à embriaguez do cálice rubro cantado no início até chegar ao estado de envenenamento poético: Gota a gota embebo-a em venenos/Retiro dela o mais puro antídoto”. Novamente, os versos de Ramos situam-se no eixo das antíteses da negação e afirmação sem necessariamente usar advérbios. A poesia envenena e liberta o leitor com seu antídoto.
Ora, eis que o leitor, no último instante, se torna arrebatado e convocado pelo discurso sublime da poesia, de modo que a figura feminina se perde e ocorre o momento kamasutra da arte e da escritura lírica sugerido por Barthes. Tudo parece evaporar “nas dobras de um poema” e a palavra, em estado nascente, germina nas mãos do artista:“escrevo nela o dilema da minha poesia”. A construção do poeta foi alicerçada no jogo do abstrato e do concreto, da subjetividade aliada à objetividade do verso. Longe de inspiração fácil, cada verso é lapidado, pensado e sugerido pelo rigor do artesão. Em Isaac Ramos, o lirismo erótico e amoroso é regado pela veia intensa da metáfora, o qual pode ser arregimentado às palavras de João Alexandre Barbosa (2005, p.124): o erótico-amoroso entra sempre pela via que é característica do poeta, isto é, pela lucidez com que faz da linguagem, da ‘écriture’ (Roland Barthes), a própria imitação do objeto a ser nomeado”.
O conjunto de versos aqui apresentado ao leitor de poesia proporciona a sensação de êxtase e prazer, descortinando uma comunhão entre o corpo e o verbo, a poesia e a linguagem e, sobretudo uma cristalização do erotismo verbal para formar a comunicação entre a obra poética e o leitor. A poesia isaacnewtiana conjuga-se pelo poder da palavra insinuante e deixa um rastro singular no sabor da metáfora que se banha de sensualidade, lirismo e sedução. Por esta e outras razões, o poeta Isaac Ramos deveria celebrar a sua lírica em obra impressa da literatura brasileira contemporânea, mas enquanto a escritura não se legitima no papel, absorvamos a centelha do verso virtual em forma de cascatas para ultimar a minha homenagem ao poeta. Assim, a minha sugestão para a edição das obras do poeta encontra-se nas páginas de seu próprio texto LIÇÃO DE VIDA: “Vai, poeta, encontrar no mundo dos sonhos o retorno à poesia. Quem sabe ela esteja te esperando no verso da página branca” (RAMOS, 1988, p.21). Afinal: “De louco e de poeta/Cada um carrega seu trono/E ainda voa fora da asa”. (RAMOS, 2007, p.2).
 
 
 
Texto postado em 13 de Janeiro de 2012,
na Coluna Poiesis do Portal Entretextos.
 
[*Poeta e Doutoranda em Estudos Literários – UFG]
 
 
Referências bibliográficas
 
 
BARBOSA, João Alexandre. As ilusões da modernidade e metáfora crítica. São Paulo: Duas Cidades, 2005.
 
BARTHES, Roland. O prazer do texto. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
 
BATAILLE, G. O erotismo. Trad. Antônio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987.
 
PAZ, Octavio. Signos em rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1986.
 
_______. A dupla chama: amor e erotismo.Trad. Wladyr Dupont. São Paulo: Siciliano, 1994.
 
RAMOS, Isaac. Astro por rastro. Aquidauana/MS: I.N.A.R, 1988.
 
______ Caderno de poesia I. In: _____ Revista Crioula. Nº 2, São Paulo, 2007.
 
VALÉRY, P. Variedades. Trad. Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1991.