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Uma breve, mas nem por isso menos dolorosa, visão do inferno. Foi esse o meu sentimento ao percorrer as 390 páginas do livro de Mario Vargas Llosa, “O Sonho do Celta” (Objetiva). Parte narrado em primeira pessoa e parte em terceira, a obra conta a trajetória do irlandês Roger Casement, desde a sua infância num subúrbio de Dublin até seus últimos dias de vida na prisão inglesa Pentonville Prison, acusado de traição.
Não pretendo fazer um resumo do livro, pois em se tratando de um romance histórico, é interessante que cada leitor faça a sua interpretação e tire as suas próprias conclusões. Na verdade, o motivo principal para escrever sobre “O Sonho do Celta” foi o de compartilhar o impacto que as “imagens pintadas” pelo autor tiveram sobre mim. Imagens de sofrimento e de horror. Todas resultado da ação do homem sobre seus semelhantes.
Dois terços da história se passam dentro da selva: primeiro na selva africana (Congo) e depois na selva amazônica (Peru). A forma objetiva, quase jornalística, com a qual o autor peruano descreve os abusos cometidos contra os nativos dessas duas regiões é de arrepiar. Confesso ter tido dificuldades em dormir depois de ler algumas das passagens especialmente fortes do livro. Em muitos momentos pensei até em abandonar a leitura. Ainda bem que não o fiz!
Ao longo do livro, o autor constrói uma imagem do ser humano que nada tem de elogiosa. Ao contrário. Vemos homens sendo torturados impiedosamente por outros homens. O amor-próprio sendo reduzido a cinzas até que nada mais reste a não ser a necessidade primitiva de sobrevivência. Verdadeiras atrocidades que poucos – muito poucos – conhecem. Páginas de sangue ignoradas pela maioria das pessoas. No decorrer da leitura, perguntei-me várias vezes como indivíduos que se diziam civilizados, e até mesmo cristãos, puderam cometer atos de tanta barbárie contra indivíduos de sua própria espécie. Não sei se as feras conseguem ser tão cruéis, mesmo sendo movidas apenas pelo instinto.
Alguns poderão dizer que os eventos descritos por Mario Vargas Llosa não são novidade, que situações semelhantes já ocorreram com outros povos e muito provavelmente estão acontecendo agora enquanto escrevo essas linhas. Concordo! O que me obriga a repetir a pergunta: como é possível que seres humanos cometam tais crimes contra outros seres humanos?
Roger Casement e, consequentemente, Vargas Llosa não souberam responder. Aliás, eu também não sei. Contudo, a epígrafe usada pelo autor pode nos dar uma pista: “Cada um de nós é, sucessivamente, não um, mas muitos. E essas personalidades sucessivas, que emergem umas das outras, costumam oferecer os contrastes mais estranhos e assombrosos entre si” (José Enrique Rodó – Motivos de Proteu).
A natureza humana é constituída de dois polos simultaneamente opostos e complementares. Em um deles encontraremos o anjo e no outro o demônio, ambos vivendo em uma eterna batalha. Em algumas pessoas, o demônio aflora com mais frequência e facilidade; em outras, o anjo e, na maioria, os dois se revezam mostrando, de tempos em tempos, suas diferentes faces.
No entanto, a descoberta de qual deles irá prevalecer só ocorre quando o homem encontra-se diante de situações nas quais será obrigado a ultrapassar as fronteiras de si mesmo. Esses momentos de escolha entre o bem e o mal, entre o anjo e o demônio, decidem o caminho que será seguido pelo ser humano.
E não se enganem, não é preciso se embrenhar na selva para ser testado dessa maneira. Na verdade, todos os dias temos a oportunidade de darmos uma espiada no anjo e no demônio que vivem dentro de nós. Todos os dias decidimos qual deles queremos ouvir.
De qualquer modo, mesmo sendo uma leitura difícil e em muitos momentos pesada, recomendo “O Sonho do Celta”. O livro é uma aula de história; uma história terrível, vergonhosa e pouco conhecida. Além disso, em Roger Casement (um personagem verídico) identificaremos os atributos de um ser humano normal, cheio de contradições e idiossincrasias. A habilidade do autor em descrevê-lo, tentando entender suas ações ao longo de uma vida, torna a leitura ainda mais interessante e facilita a nossa identificação com ele. Todos esses elementos só colocam em evidência as qualidades de Mario Vargas Llosa como escritor, confirmando-o como um dos maiores expoentes da literatura internacional.