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Reginaldo Miranda[1]

 

No momento em que a seccional piauiense da Ordem dos advogados do Brasil, comemora com pompas e galas o 90º aniversário de sua fundação, resolvemos indagar o que seria dos primórdios da advocacia piauiense?

É sabido que a primeira freguesia de nosso sertão foi criada e instalada em 3 de março de 1697, de que tomou posse o padre Tomé de Carvalho e Silva. Da mesma forma, sabemos que uma carta régia de 20 de janeiro de 1699, mandava criar em cada freguesia do Brasil, “um juiz à semelhança dos juízes de vintena”, que “seria um dos mais poderosos da terra”, auxiliado por “um capitão-mor e mais cabos de milícia”. O juiz de Oeiras, tomou posse do cargo em 1º de janeiro daquele ano, portanto, antes da assinatura da carta régia porque a nomeação se fundamentava em ordens anteriores. No entanto, logo em princípio de abril foi o mesmo desacatado e alvejado com um tiro, de que se livrou por sorte, vítima da prepotência do fazendeiro Pedro Alves de Oliveira[2]. Esses ricos criadores não queriam ser molestados pela Justiça.

Os juízes de vintena eram eleitos pelas câmaras com alçada para causas de pequeno valor. Na povoação, depois vila da Mocha, funcionou essa justiça por largos anos, assim como nos curatos de Parnaguá e Parnaíba, a partir de 1727, depois se estendendo para outras localidades na medida em que nasciam as povoações e se transformavam em curatos ou freguesias. Com a criação das primeiras vilas a estrutura judicial se ampliava com a presença dos juízes ordinários, que compunham o senado da câmara.  Os padres reitores do Colégio da Bahia dão testemunho dessa justiça, a partir de 1711, na medida em que se queixam de que “a justiça da terra” favorecia aos filhos naturais de Domingos Afonso Sertão. Nessa época aqueles religiosos estavam tomando posse do rico patrimônio deixado pelo referido colonizador de nossos vales ribeirinhos e enfrentavam forte oposição de três filhos naturais daquele, apoiados pelo juiz de vintena da Mocha e pela sociedade local.

Evidentemente, em torno desses juízes de vintena atuaram os primeiros rábulas do Piauí, defendendo os pleitos dos jurisdicionados. Mas ainda não eram provisionados, atuando de forma informal como mediadores jurídicos, resolvendo querelas de menor gravidade, muitos desses conflitos não sendo formalizados nos moldes legais. Aliás, eram todos iletrados, juízes e rábulas, com dificuldades para usar a escrita dentro dos padrões da técnica jurídica. Porém, possuíam um nível intelectual acima da média da população, sendo escolhidos entre pessoas alfabetizadas, ex-seminaristas com capacidade de envolver e sensibilizar com suas arengas, muitas vezes apelando para o sentimentalismo. Não eram bacharéis formados porque naquela época não tinha um só morador formado no Piauí, com exceção do padre vigário. Embora as Ordenações Filipinas somente permitissem aos bacharéis de Coimbra o exercício da advocacia no Reino, desde o Alvará de 24 de julho de 1713, foi estendido esse direito às pessoas idôneas, que poderiam advogar nos auditórios fora da corte mediante provisão. Na prática, esse costume desde o início era permitido na Colônia, por falta de letrados.

É importante ressaltar que, em 25 de julho de 1724, toma posse do cargo de ouvidor e instala a Ouvidoria-geral do Piauí, o bacharel Antônio Marques Cardoso, natural de Lisboa. Foi o primeiro bacharel a exercer judicatura no Piauí. Então, sem perda de tempo provisionou para advogar como rábula no termo da Ouvidoria do Piauí, a Manoel Peres Gutierres, pernambucano radicado na vila da Mocha. Ao que conseguimos apurar foi esse o primeiro advogado provisionado do Piauí. Esse primeiro provisionado do Piauí era sarcástico, irreverente, divertindo-se em colocar apelidos jocosos em muitos moradores da nascente vila. Inclusive, era suspeito de vez ou outra fazer circular pela vila papéis apócrifos que amanheciam nas portas. Sabemos de uma causa que ele defendeu e foi sua ruína. O marchante da vila, havia arrematado os dízimos reais com a condição de que os donos dos gados preferissem a ele na venda dos animais e não os vendendo, que cortassem no açougue pagando-lhes o subsídio. No entanto, enfrentava concorrência desleal por parte de pessoas de fora que adquiriam o gado sem respeitar aquela preferência e vendendo a arroba por oitenta réis a menos do que tinha sido arrematado. Então, em setembro de 1727, foi deferido seu pleito pelo ouvidor juntamente com a câmara, mandando fixar edital no lugar de costume. Peres Gutierres, que defendia o pleito desses concorrentes não viu acolhida sua tese de defesa, por cuja razão riscou e alterou o referido edital, ou foi disso acusado juntamente com o ex-juiz de órfãos Floriano Correia de Brito. Foram ambos condenados pelo crime de conjuração a quatro anos de degredo no Maranhão e Pará, respectivamente, sendo imediatamente presos com guarda à porta[3]. Foi esse o triste fim do primeiro provisionado do Piauí.

Mais sorte teve seu sucessor, o rábula Manoel de Souza de Araújo, que em setembro de 1728, foi pelo ouvidor admitido para advogar no foro da vila. Era esse licenciado, de bom procedimento e prática do direito civil e canônico, advogando com boa aceitação. Conforme o costume da época, era sua licença renovada anualmente por provisões do vice-rei do Brasil e do governador e capitão-general do Maranhão, por cuja razão, em 1733, solicita a el-rei provisão definitiva para advogar tanto na vila da Mocha quanto no Maranhão[4].

Paralelamente à atividade desse segundo rábula também exercia a advocacia sem provisão, sobretudo na freguesia de Parnaguá, o padre Antônio Henriques de Almeida Rego. Era natural de Portugal e viera para o Piauí no ano de 1724, em companhia do ouvidor Marques Cardoso. É certo que praticava a advocacia ao menos desde o ano de 1728, tendo adquirido não somente grande respeito quanto avultado cabedal. Em 30 de março de 1737, denunciava o novo ouvidor Francisco Xavier Morato Boroa, que muitos clérigos praticavam inadvertidamente advocacia nos auditórios seculares sem dispensa real, como mandavam as Ordenações. E que recebera provisão em 3 de julho de 1734, neste sentido, não admitindo essa prática. Porém, não sendo suficiente esta sua recusa, voltou a denunciar o referido padre, que insistia no assunto valendo-se das amizades que tinha com o governador do Bispado e com os juízes ordinários e de órfãos. Então, solicita a el-rei autorização para coibir essa prática e para expulsar todos os religiosos infratores[5].

No tempo do ouvidor José Marques da Fonseca Castelo Branco (1752 – 1755) obteve provisão para advogar no foro daquela ouvidoria o rábula Antônio Rodrigues Chaves. Mais tarde, com o afastamento e prisão desse ouvidor foi ele constituído seu advogado para acompanhar tanto a sindicância quanto a residência que se lhe fazia. Por essa razão, seria contido e arbitrariamente preso em 1759, pelo ouvidor Luís José Duarte Freire, que o chamou de “rábula trêfego, malévolo e facinoroso”[6].

Foi sucedido por Antônio José de Queiroz, então provido pelo novo governador João Pereira Caldas, para a “serventia do ofício de advogado nos auditórios desta cidade” de Oeiras, cuja provisão era renovada anualmente. Por essa razão, pleiteia ele provisão real no ano de 1764.

Em princípio do século XIX, advogava sem provisão na freguesia de São João da Parnaíba, José Francisco Sousa da Silva, “o rábula mais perigoso que havia entrado nas capitanias do Maranhão e Piauí”, dele diria em 4 de maio de 1803, o capitão-general D. Diogo de Sousa[7].

Por fim, no ano de 1790, se estabelece como rábula na cidade de Oeiras, antiga vila da Mocha, o licenciado Antônio Pereira Nunes, sendo devidamente provisionado. Esse provisionado angariou largo conceito profissional fazendo fortuna com a aquisição de fazendas e a ocupação de cargos importantes na administração colonial. Conforme declarou em petição, era o único advogado com provisão que atuava no Piauí por aqueles dias. Ocupou os cargos de tesoureiro geral das fazendas dos defuntos e ausentes, capelas e resíduos, assim como secretário de governo interino do Piauí, desempenhando, assim, papel estratégico, provocando incômodos e conflitos entre sujeitos do poder. No governo de D. João de Amorim Pereira, fora dos mais influentes, sendo seu confidente e orientador político. Por aqueles dias, esteve maquinando diversas intrigas entre ouvidores e governadores, fato que resultou em sua prisão na cadeia de São Luís do Maranhão, por breve período. Era astuto e inteligente. Posicionou-se contra a oligarquia piauiense. Dado o clima de discórdia que envolvia sua pessoa, foi assassinado com dois tiros de bacamarte, às 11 horas da noite de 13 de setembro de 1803, sendo alvejado pela janela de bica da casa de frei Cosme Damião da Costa Medeiros, vigário colado de Oeiras. Ali se encontrava jogando cartas com alguns parceiros. Foi um crime político que muito abalou o Piauí, com graves repercussões e muitas acusações.

Dentre pouquíssimos outros, foram esses os advogados provisionados que atuaram na capitania de São José do Piauí, defendendo os interesses de seus clientes e incomodando o sistema. Por essa razão, muitos deles sofreram graves arbitrariedades, inclusive esse último sendo assassinado, conforme acabamos de mostrar. Embora sem o bacharelado eram esses rábulas de inteligência intermediária, com conhecimento posicionado acima da média dos rústicos criadores locais. Sabiam manipular as palavras e bem atuar no fórum local, assim desempenhando as obrigações que deles se esperava. Foram os pioneiros da advocacia piauiense, na tribuna forense antecedendo aos futuros bacharéis que iriam atuar somente ao tempo do império.

  

 


[1] REGINALDO MIRANDA, advogado especialista em Direito Constitucional e em Direito Processual, foi membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI, da Comissão de História, Memória, Verdade e Justiça, assim como cofundador e presidente da Associação de Advogados Previdenciaristas do Piauí. Representa a OAB-PI na composição da Comissão de Estudos Territoriais do Estado do Piauí – CETE (17.2.2021 – 31.1.2023). É membro da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.

[2] AHU. ACL. N-Bahia. 4277.4278. 4279.

 

[3] AHU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 34.

[4] AHU. ACL. CU 01. Cx. 1. D. 35.

[5] AHU. ACL. CU 06. CX. 2. D. 129 e 130.

[6] AHU. ACL. CU 016. Cx. 5. D. 370.

[7] AHU. ACL. CU 016. Cx. 25. D. 1343.