Por que escrevo? Ora, porque sim, e pronto! É assim que respondem as crianças com sua clareza das coisas antes que lhe assomem ao espírito aquele sentimento paralisante de impotência diante da complexidade que fizemos da vida. Mas esta resposta não vale, não é? Já fiz, de fato, esta pergunta para mim mesmo, ou diante do papel ou em hora insuspeitada, de repente. No entanto, devo confessar: pergunta feita sem o suficiente interesse pela resposta que me fizesse pensar no assunto com mais profundidade e procurar uma resposta e, por fim, escrevê-la. Penso agora e encontro o primeiro motivo, um tanto quanto superficial, que me leva a escrever. Ora, escrevo porque, por vezes, me convidam para escrever e nunca, que me lembre, recusei um convite desses. Foram poucos, na verdade. Saber da existência de um leitor é muito estimulante. Convites, de uma maneira geral, nem sempre aceito. E olha que já me fizeram outros: alguns irrecusáveis, outros interessantes, até aqueles indecentes. Faço, pois, só o que penso que devo e o que gosto. Lá vai o segundo motivo: escrevo porque gosto de escrever. Nem todos que escrevem gostam de fazê-lo. Eu até ata de reunião gostava de escrever, quanto tinha tal incumbência no Banco do Brasil. Passado. Na verdade, me parece mais remoto que de fato é. Mas, lembro-me agora: gostava. Um prazer na subversão da austeridade que o modelo sugeria, um prazer em apontar as contradições quando todos esperavam a tradicional apatia, motivada por uma tácita noção de hierarquia. Gostava, apesar de nunca tê-lo confessado antes. É claro, que o Dilson se refere à escritura literária, mas uma coisa puxa outra. Eu vou chegar lá. No Banco, escrevi, também, manuais. A coisa de ser didático era, lembro-me, mais um motivador. Sim, gosto de ser claro, fazer as pessoas entenderem perfeitamente o que quero. Quando nos propomos a escrever com esta expectativa surpreendemo-nos ao perceber que não entendemos tanto do assunto quanto pensávamos. Já viveram esta experiência? Quantas vezes não retomei aos estudos ou tive uma luz que não teria se não fosse a reflexão imposta pela obrigação de escrever e atender as expectativas de um interlocutor, mesmo virtual. O fato é que escrevendo consigo ser mais claro do que falando, apesar de todos os recursos que dispomos ao falar: o tom, os gestos, as repetições, o olhar, etc. E ai vem uma coisa de compensação. É verdade, nunca fui bom de papo, nunca comigo a conversa foi fácil. Tudo mundo arranja justificativa na compensação, não é verdade? No entanto, no meu caso, me parece que foi isto mesmo, mas é somente um ingrediente entre tantos. Não é um daqueles casos de absoluta reviravolta como o de uma história que ouvi, de um campeão de maratonas e medalhista de olimpíadas que começou a correr porque tinha um defeito na perna que lhe causava grande dificuldade para andar, como aquele Forest Gamp. Não, o meu caso não é assim tão extremo. Ouvir das pessoas que eu escrevia bem era por demais reconfortante. Bem, são até agora, três motivos que me levaram a escrever, todos exteriores: os convites, o gosto, a compensação. O quarto - buscando refletir agora com maior interioridade - vem do conforto que há pouco falava, mas que em si não se configura como um motivo, nem a vaidade que é mais forte e quase se confunde com ele. Sim, escrevo por vaidade. Pode parecer que não, mas o conforto nasce da vaidade. E do elogio aos meus escritos eu sempre tinha uma tirada que ainda mais confortava a minha vaidade: "eu escrevo bem porque penso certo" ou "não são as minhas palavras que importam, mas a minha causa" ou alguma coisa do tipo. Meu Deus, vaidade! Afinal, eu não escrevo tão bem assim, mas escrevo, num país em que pouquíssimos o fazem. Vamos dizer assim: serve por falta de concorrência. Bem, depois de refletir no conforto e na vaidade, podemos apresentar mais um motivo: o instinto gregário, ou necessidade de sociabilidade, inerente ao fenômeno humano. Este sim, me parece um bom motivo, tirando agora os andaimes do edifício psicológico que construí aqui. Tem uma coisa no escrever, também, que penso ser o aspecto mais importante: a aventura do auto-conhecimento que, por fim, está ligado à própria história da humanidade se fazendo no caminho inusitado que anuncia o escritor-criador. O lirismo tende a acordar todos os nosso demônios, não é verdade? O escritor se faz poeta, na acepção da palavra, quando avança por caminhos nunca dantes navegados e cria, apontado novas possibilidades para essa aventura do espírito. Não há como não ser assim sob pena de não ser lirismo. A ficção, por sua vez, suscita uma brincadeira muito interessante que, antes de tudo, por ser brincadeira, aponta nossa natureza essencialmente lúdica. O interessante fica, notadamente, por conta das personagens que criamos. Criamos? Quem já experimentou a supra-realidade literária sabe que no processo de escritura o bicho pega quando as personagens se rebelam contra o autor e tentam subverter o projeto original. Ai é um arranca-rabo dos diabos. E quem acaba vencendo não é um nem outro, mas a dialética da realidade que, por sua vez, recebe os ingredientes dionisíacos do lirismo que está implícito nas personagens. Uma loucura. A vitória é de todos, afinal. Vitória da arte e da vida. A aventura da escrita literária nos coloca na condição de criadores. E isto talvez seja o sentimento mais motivador que exista. O fenômeno humano, apesar de todas as particularidades e idiossincrasias que nos fazem únicos, pode ser sintetizado por um impulso à liberdade e à transcendência, não é verdade? Além do instinto gregário que já falei. Isto nos une. Basta olhar, mesmo por auto, a história do homem, desde sempre: uma busca eterna de superação dos próprios limites. Sempre acreditei que o elemento que nos faz a imagem e semelhança do Criador seja nosso impulso à criação. Escrevo, pois, como todos que o fazem, motivado por esse sentimento essencial. O fato é que há no ato de escrever um complexo de motivações exteriores e interiores. Uma combinação dessa nossa natureza gregária e o desejo de superação em que o compromisso comigo e o compromisso com o mundo se faz uno. O encontro desses dois contrários (não dá para minimizar a dimensão deste choque), é um momento supremo de conciliação e se realiza naquilo que chamamos arte: a realidade mais acabada de nós mesmos, enquanto afirmação da vida. Afirmação: Sim! Pois é, é o que eu estava dizendo. Escrevo porque sim! E pronto!

Dante Gatto é professor de Literatura da UNEMAT, em Tangará da Serra, MT, e participa da lista de discussão Litteratura <[email protected]>