Neste breve texto, pretende-se apontar alguns caminhos da história do livro ilustrado das origens à contemporaneidade. Para tal fim, elegem-se a obra Para ler o livro ilustrado (2011), da francesa Sophie Van der Linden e a obra Pelos jardins de boboli: a arte de ilustrar livros para crianças e jovens (2008), do ilustrador carioca Rui de Oliveira. Esta contextualização constitui-se como relevância em virtude de o livro ilustrado, ao longo de sua trajetória, passar por inovações e, hoje, cada vez mais, se percebe que ilustradores perseguem a ideia de explorar as múltiplas possibilidades de sentido da imagem física (ilustração).

No ensaio “Evolução do livro ilustrado”, Linden (2011) assegura que, mesmo na França, ainda não se tem uma história do livro ilustrado e a sua origem não está definida com muita clareza. Mas ela se apoia nos historiadores da ilustração Michael-Claude-Anne Parmegiani e Annie Renonciat para trazer ao leitor tal contextualização do codex[1], livro de madeira, ao livro ilustrado moderno.

Discorrer sobre a história da ilustração, do design gráfico do livro é considerar a história do livro e da leitura. Não se deve desvincular a história cultural da humanidade e o surgimento da palavra escrita. De forma sucinta, assim farei uma retrospectiva aos tempos primitivos até o momento atual. Tal consideração indissociável é feita porque o design gráfico sempre existiu na história do primeiro livro, uma vez que ele participa da projeção técnica e de sua evolução tecnológica.

Desde os primórdios, a forma de apresentação do livro exigiu projeções. Primeiro, surge o volumen que se tratava de um cilindro de papiro a ser desenrolado à medida que era lido. Posteriormente o códex, de criação grega e gravura das leis, mais tarde melhorado pelos romanos durante a Era Cristã, ao criarem o pergaminho costurado que ganhou a forma retangular formando um conjunto de páginas.

Com a chegada do século XIII, a igreja influenciava os artistas com suas iluminuras e recursos gráficos que embelezavam os livros. A natureza da ilustração era decorativa, o que diverge da ilustração hoje porque naquela época ainda não se pensava no público infantil que somente passou a existir, de fato, no século XVII.

O século XIV assiste à chegada do livro em papel, com as invenções de Johannes Guttenberg, momento em que se inicia o desenvolvimento dos desenhos das palavras em forma de grafemas[2].

O hornbook era um arquétipo de produção em folha de couro, oriundo da Inglaterra, no século XV, em desenho de cruz, e era conhecido como Crisscross. Não havia espaço para as iluminuras e quando figuravam na página, eram colocadas no verso. Após os hornbooks surgem os livros de bolso com o propósito de difusão dos textos clássicos da literatura grega, acompanhados de ilustrações. Tal marco histórico se deve às inovações tipográficas promovidas pelo humanista Aldus Manutius (1450-1515.

No século XVI nasce o primeiro livro ilustrado no mundo. O marco histórico deve-se ao bispo da Morávia, Jonh Amos Cumenius que publica, em 1658, o chamado álbum ilustrado para crianças, sob o título Orbis Pictus[3].

O mercado livresco recebe as inovações no quadro das iluminuras com a literatura de Charles Perrault (1695). A mudança consiste tanto do ponto de vista formal como do ponto de vista das decorações das capas e do livro para o público infantil. Historicamente, o público tem acesso à obra O gato de botas, com as ilustrações do século XVII.

Nessa perspectiva, até o final do século XVIII era utilizada a técnica de composição em única página, onde figuravam texto e imagens, conhecidas por xilogravura. Como exemplo de xilogravura no Brasil, há a literatura de cordel, com nome de origem portuguesa, a qual se perpetuou no nordeste. Outro marco do passado livresco refere-se ao recurso do talho-doce, conhecido como um dos mais antigos processos da calcografia, que consistia na gravura feita por ácido sobre uma placa de cobre, divergindo-se assim da gravura da ilustração.

A litografia foi uma das técnicas utilizadas ao final do século XVIII e que impressionaram os modelos franceses no início do século XIX. Tal recurso artístico fazia-se diretamente na pedra, a partir de três materiais básicos: lápis, pincel e penas. Merece citar também o surgimento da imagem em quadrinhos, cultivada primeiramente pelo pedagogo Rodolphe Töpffer, responsável pela criação de “vinhetas articuladas entre si” (LINDEN, 2011, p.13).

Com a ampliação dos procedimentos de impressão do livro, surgem obras com espaço para ilustrador e autor. Sobre esses novos procedimentos, Linden aponta a obra Max and Moritz [Juca e Chico], de Heinrich Hoffmann (1865), na Alemanha, com imagens seguidas de curtos blocos textuais. Um dos marcos históricos fundamentais na ilustração do livro infantil deve-se a Evans nos anos 1870, na Inglaterra, de onde erigiu trabalhos de Walter Crane e Kate Greenaway com vista aos recursos visuais e abordagens da ilustração decorativa e, sobretudo, voltados para a página dupla que anteriormente concentravam-se em página única.

Paulatinamente, surge a invenção do livro moderno ilustrado, cujo crédito se deve a Randolph Caldecot[4]. Até meados de 1919, os livros ilustrados eram trabalhados como texto e imagem em folha única. Nesta época, aparecem mudanças na diagramação do livro que passa a envolver o leitor no que se refere à capa, tamanho, prefácio, colocando a imagem em evidência ao texto e privilegiando o caráter da visibilidade.

Para falar dessa evolução do livro ilustrado, vale muito considerar uma rápida informação histórica. Para Linden, na década de 1960, os livros ilustrados pareciam ficar em segundo plano em decorrência da censura de 16 de julho de 1949 que proibia a edição de toda e qualquer imagem de violência ou racismo. Isso também se deu pelos problemas das gráficas que, depois da guerra, não tinham subsídios, matéria prima. Sendo assim, o livro para crianças sofreu alguns prejuízos. 

Avaliando o contexto epocal para se chegar ao livro ilustrado contemporâneo, merece sublinhar as contribuições de Robert Delpire, editor de arte, o qual influenciou ilustradores a ampliar o espaço e o status da imagem dentro do livro, tendo em vista que o livro ilustrado não deveria ser apenas destinado ao público infanto-juvenil, mas ser uma produção autônoma, chegando a dar crucial destaque à tipografia, anunciando, por excelência, uma nova concepção da imagem que, segundo o defensor dessa contemporaneidade, passava a representar o inconsciente infantil. Um dos exemplos de adeptos à contemporaneidade é Maurice Sendak (1993-2009), numa obra consideravelmente conhecida em todo o mundo, Onde vivem os monstros, editado pela Cosacnaif no Brasil.

Sob esse prisma, a ilustração ganha novos atributos e “as imagens rompem deliberadamente com a funcionabilidade pedagógica”. Em face das imagens denotativas, cópias do real e suportes de aprendizado, “emergem imagens inesperadas com ressonâncias simbólicas”, afirma Linden (2011, p.17).

Historicamente, podemos mencionar nomes relevantes na difusão do livro com imagem. São colaboradores Tomi Ungeres, Philippe Corentin, Grégoire Solotareff, Claude Ponti, os quais proporcionaram, a partir de 1965, livros inusitados, dentre eles, os livros-fotográficos, livros com imagens abstratas, livros-imagem e livros de artistas plásticos.

No Brasil, a referência à primeira publicação do livro infantil ilustrado-colorido deve-se ao O patinho feio, de Hans Andersen (1915)[5]. Curiosamente, em sua obra A literatura para crianças e jovens no Brasil de ontem e de hoje: caminhos de ensino, a autora Maria Alexandre de Oliveira (2008) assevera que o ilustrador não foi destacado. Ela discute a figurativização da imagem, defendendo que, tanto em preto e branco (antes do século XIX) como na ilustração em cores, a obra correspondia ao papel de comunicação. “Tradicionalmente, as ilustrações eram raras e pouco ou nunca coloridas; eram figurativas, redundantes, mas propiciando, naquela época, uma comunicação não-linear, própria da linguagem imagética” (ALEXANDRE DE OLIVEIRA, 2008, p. 66).

A ilustração, por assim dizer, proporciona dentro dos meandros da imagem ou da pintura muda, a comunicação que pode ou não ter uma sequência, exceto quando se tratar dos quadrinhos que contém vinhetas em um encadeamento narrativo e/ou descritivo. Para o leitor absorver tal linearidade, o olhar deve ser educado como uma formação de leitura visual. Segundo o professor Rui de Oliveira, em sua obra Pelos jardins de boboli: a arte de ilustrar livros para crianças e jovens (2008), a ilustração necessita

 

 [...] do direcionamento do olhar – um recurso decisivo para se contar uma história, além de prender a atenção do leitor. Esse caminho visual conduz à leitura gráfica por meio de uma hierarquia de elementos descritivos e narrativos conscientemente organizados pelo artista (OLIVEIRA, 2008, p.124).

 

     Partindo dessa “imantação mágica do ver”, o analista deve observar a ilustração por meio de símbolos projetados pelo artista que pode eleger formas geométricas no desenho ou projeto de imagem, seguindo uma tríade: círculo, quadrado e triângulo, a qual é também fundamental no âmbito da interpretação visual. Generalizando, tudo que existe no mundo das imagens segue essa base geométrica. Oliveira (2008) assevera que todas as sensações (líricas, cômicas ou dramáticas), bem como todos os sentimentos e emoções que um ilustrador pretende representar pelo viés da imagem se ligam a essa geometria, embora não seja um método, mas são adjacentes ao universo das iluminuras em todos os séculos.

Conforme escrito algures, o primeiro livro infantil ilustrado e colorido foi O patinho feio, de Hans Andersen (1915). Naquela época tradicional, um livro ilustrado era uma questão de raridade e as ilustrações eram decorativas e redundantes. Contemporaneamente, pode-se notar que, com a expansão tecnológica, a arte da ilustração deu um salto expressivo em termos de qualidade e linguagem. A ilustração assume novas perspectivas, uma vez que neste século, assistimos a um grupo de ilustradores que se preocupam não somente em dialogar com o texto literário. Eles procuram “conferir poeticidade, simbologia e beleza artística”, atesta Neide Medeiros dos Santos (2008), no artigo O papel do ilustrador na literatura infantil brasileira.

Para a ilustradora brasileira Graça Lima (2008), o trabalho de um ilustrador deve sempre ser visto como arte comparada à pintura e outras artes:

 

 [...] assim como os pintores, os escultores, os músicos ou qualquer outro tipo de artista, [o ilustrador] tem a mesma necessidade de fazer compreensíveis seus sonhos e, por meio de sua capacidade profissional, interpretar o mundo em que vive dando sua visão imaginativa e real à sociedade (LIMA, 2008, p.41).

 

        Diante das palavras de Graça Lima, convém pensar que a ilustração além de partir do texto deve criar outro espaço imaginativo de mundo e de realidade e, por esse aspecto, passa a exercer uma dupla função: a de interpretar o querer dizer da palavra escrita e o não dito dela, fundando um terceiro nível de expressão: a história que será construída pelo interpretante (leitor). É exatamente sobre esse terceiro nível de expressão fundada pelo ilustrador que discorre o autor André Neves. Segundo ele, a ilustração contemporânea passa pela ousadia da criação e não necessariamente em reproduções da palavra. Ao analisar o papel do ilustrador da nova geração, o ilustrador elucida: “o que se deve acentuar é que nessa última geração os ilustradores estão plantando suas ideias com convicção. Não estão repetindo palavras, mas mostrando seus próprios jardins de olhar” (NEVES, 2008, p.170).

O papel do ilustrador deve ainda priorizar a constituição do leitor de literatura infantil, pois vivemos em face da formação do leitor de texto escrito, mas está na pauta do dia pensar no treinamento do leitor de imagens. É fulcral exercitar a criança para ler as imagens como partes constituintes da palavra. No artigo “Uma proposta de leitura chamada livro e suas relações perigosas”, o escritor e ilustrador Celso Sisto (2008) salienta:

 
É preciso exercitar esse leitor para ler texto escrito e imagem como partes de um mesmo binômio! No caso do livro infantil, partes inseparáveis. Essa leitura, nunca pode ser dogmática, fechada, redutora. A leitura literária transita sempre pelo terreno das suposições! Ela é sempre uma leitura em suspensão! Esperando ser efetivada. E essa efetivação conta com o arsenal de leituras e imagens do leitor, evidentemente! (SISTO, 2008, p. 1).

  

A suspensão e a expectativa são pontos determinantes para o leitor-mirim. Sempre ficará a sensação de que a imagem ilustrativa não é apenas a interpretação da metáfora textual traduzida pelo artista da imagem, mas sim uma possibilidade de recriação da imagem, um transbordamento que está muito acima da narrativa textual, porque a ilustração conta a sua própria narrativa, é capaz de proporcionar o adensamento da metáfora de outra metáfora e da criação de outras imagens na mente do leitor que sempre irá supor outra leitura.

 

 
(Texto postado por Rosidelma Fraga – 26/09/2012, para o Portal Entretextos)



[1] No Brasil, vale sugerir, dentro de uma contextualização da história do livro, a obra Fim do livro, fim dos leitores?, de Regina Zilberman (2001).

[2] A propósito, leiam História do design do livro ilustrado. Disponível em: < http://olivroilustrado.blogspot.com> . Acesso em: 27 de julho de 2011.

[3] Conferir a imagem “A barbearia” do livro Orbis Pictus (1658). Breve história do design editorial no livro infantil. In: O livro ilustrado. Disponível em: <http://olivroilustrado.blogspot.com> Acesso em: 27 de julho de 2011.

  [4] Cf Sophia Van Der Linden, o autor foi considerado por Maurice Sendak o inventor do livro moderno ilustrado.

 [5] Ver Arte para o futuro. TV escola.  In: A arte de ilustrar livros para crianças. Diversos autores. Ano XIX – Nº 7 – Junho/2009.