“Pássara Ritita, a nuvem”, do angolano Ondjaki (2007),  participa do hibridismo que teorizou Emill Staiger (1997). Há uma narrativa banhada pela reinvenção da linguagem com ênfase no delírio da personagem Ritita, responsável pelo imaginário e fantasia. Sobre tais aspectos nas narrativas africanas Benjamin Abdala Junior (2005), ao escrever na orelha da obra Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários, de Rita Chaves, destacou que várias obras são arquitetadas sob a égide de “formulações da utopia libertária com imagens literárias artisticamente elaboradas”[i].
A linguagem de Ondjaki é artisticamente elaborada e abre as cortinas do imagético através de um lirismo quase poesia se não fosse prosa. Ao ler o conto, nota-se uma similaridade com a personagem do conto “A menina de lá”, de Guimarães Rosa e com “A menina avoada”, de Manoel de Barros, embora não seja este o objetivo desta recomendação de leitura, mas apontam-se tais convergências com o intuito de asseverar que a narrativa de Ondjaki tem uma construção poética de qualidade tanto quanto a dos brasileiros mencionados.
 Segundo Artur Pestana dos Santos Pepetela (2007), Ondjaki é um jovem que escreve uma ficção viçosa e jovem, que fornece a frescura e a alegria a um texto[ii]. Com toda a frugalidade da narrativa ondjakiana, o conto eleito emana de um trabalho com a linguagem poética que o aproximaria também do angolano José Luandino Vieira e do moçambicano Mia Couto.
Curiosamente,“Pássara Ritita, a nuvem” inicia-se com a seguinte epígrafe da obra de Manoel de Barros: “o que sinto mesmo é a incompletude: essa falta de explicação para o sentido da vida” (p.223). A citação estabelece uma inteira relação com o enredo, uma vez que, nas primeiras linhas, o leitor tem acesso a tal incompletude que o indivíduo busca no sonho e na existência do ser que, numa analogia a personagem G.H de Clarice, estará sempre sendo. É sobre o sonho de querer ser nuvem que o narrador onisciente descortina a história de névoa:
 
 
“Está é uma estória muito vaporosa, em tom de névoa. Nem lhe procurem nexos: eu própria lhes proibi de aqui estarem, irritantes. Trata-se da minha afilhada, única e sonhadora: queria ser nuvem! Tentei lhe desconvencer, mas nada: ninguém sabe combater um sonho” (ONDJAKI, 2007, p. 223).
 
 
A instauração do sonho confunde-se com a personagem central do conto. Ritita “manifestava muito aérea, vias do céu; a moça afinal também é pássara, quer só voar” (ONDJAKI, 2007, p.223). Desde o começo, o narrador mostra que desferir a imaginação está no consciente da menina voadora e “seu voo era mesmo constante, ocupador dos todos momentos”. O conto toma verossimilhança no absurdo da linguagem quando o leitor degusta a transcrição do olhar do narrador sobre Ritita que se mistura à madrinha-nuvem:
 
 
“Um dia acreditei-me de sua paixão tendencial: lhe vi poisar numa nuvem. É possível sentar na nuvem? [...] estou-lhe bençoar. Vá lá onde é esse seu lugar, no canto de um céu. Só lhe recomendo: não esqueça seus antigos seus. Na chuva me mande seus recados; no vento, griete sua sípida voz. Lhe escutarei, muito atenta. Em caso disso, lhe ajudarei. Bênção!” (ONDJAKI, 2007, p.223- 224).
 
 
A utopia constitui-se como um percurso lírico e imagético e amplia-se pelo ensinamento dado pela bênção magnífica da madrinha, a que representa o papel do mais velho, tendo em vista que ela endossa o sonho da menina ao atribuir-lhe conselhos e designar a bênção maternal. A resposta encontra-se na própria imaginação e no neologismo poético:
 
“Se bicho vira nuvem, vira tudo, sonhacreditantemente. Meus olhos incrédulos, tudo registraram, com minha boca berta: Ritita, ex-pássara, se esvoava, semi-humida, nebulosa. Bênção!” (ONDJAKI, 2007, p.224).
 
 
O conto transmite a visão de que o sonho vai além da fronteira do voo do imaginário: ele reside no plano da verdade instaurada na poesia que é descortinada na alma da menina Ritita e transcende na veracidade da existência mesmo que seja pela veia da invenção expressa no advérbio de modo sonhacreditantemente. Sonho e utopia mesclam-se em linguagem de poesia. Com suas pinceladas poéticas, a personagem, nomeada pelo narrador, diz e acontece, nomeia e assim se faz. E o leitor sente-se banhado pelo dilaceramento desse mundo utópico para onde o texto ondjakiano consegue transportá-lo. Ler este conto de Ondjaki é navegar pelo caminho do sonho, cujo resultado é a soma da gradação dos verbos "sonhar", "acreditar" e "realizar", da mesma forma que disse Ana Paula Tavares (2008): "Os da minha rua é o milagre das flores do embomdeiro: habitam o mundo em concha por breves momentos e vêem através da luz o milagre das pequenas coisas".
  Fica aqui então mais uma recomendação de leitura de um dos mais belos contos, de Ondjaki (2007). Aliás, um livro que emprestei a um leitor (em 2010) e não recebi de volta.
O conto por ser lido na Antologia do conto angolano intitulada "Como se viver fosse assim" no link:  http://pt.scribd.com/doc/36492611/Livro-Antologia-Do-Conto-Angolano-1
 
Por Rosidelma Fraga
30/05/2012.
 


[i] Cf. O paratexto orelha, do livro supracitado, sem número de página.
[ii] Op. Cit. Prefácio a uma antologia do conto angolano, por Zetho Cunha Gonçalves, publicado em 06 de setembro, 2010. Disponível em: <http://www.buala.org/pt/a-ler/prefacio-a-uma-antologia-do-conto-angolano>. Acesso em: 15 de dez, 2010.