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                                                                                   “Odilon Nunes é um pesquisador notável,

fiel à verdade histórica, buscada nas

fontes primárias. Poucos Estados terão

um pesquisador e historiador tão

seguro, tão correto, tão autêntico” José

Honório Rodrigues (Jornal do Brasil, 28.04.1973).

 

              O Prof. Odilon Nunes(1899-1989), estreou em livro no ano de 1931, com O Piauí na História, livro didático voltado para o ensino primário e concebido dois anos antes, versando sobre história e geografia piauiense. Àquele tempo era ele professor, diretor e fundador do Ginásio Amarantino, na cidade de Amarante, no Piauí, sua terra natal. E, tendo de cumprir o programa oficial do Estado que exigia o ensino de história do Piauí, escreveu e editou o primeiro livro didático piauiense, uma vez que foram infrutíferas tentativas anteriores de outros autores.

Na verdade, escreveu-o com o desejo de que fosse adotado em todas as escolas primárias piauienses, fato que não se verificou dado o desinteresse do governo e também à apatia geralmente existente em torno de tudo que diz respeito às cousas do Piauí, embora já tenha logrado quatro edições. Segundo anotou o historiador Manuel Domingos Neto, em suas Indicações Bibliográficas sobre o Estado do Piauí: selecionadas e comentadas (CEPRO, 1978), “o livro é destinado a crianças, a quem o autor pretende ensinar a história do Piauí. É feito sob a forma de ‘diálogo’ entre um velho avô[Aguiar] e seu neto[Almir]. Sua importância vem do fato de Odilon Nunes, um dos maiores pesquisadores da história do Piauí, ter neste trabalho, emitido de maneira extremamente clara toda a sua concepção [uma concepção de história total, abrangente, globalizante] sobre a evolução histórica do Estado” (Domingos Neto apud Erasmo Celestino, 1996: 35/36).

Após esse bem sucedido livro de estreia, Odilon Nunes passa vinte e seis anos sem publicar novas obras, embora nunca tenha abandonado a pesquisa e o acendrado amor à terra piauiense. Nesse tempo, encerra as atividades de sua escola amarantina e transfere-se para Teresina, Capital do Estado, voltando-se mais para a atividade pedagógica, em cujo mister houve-se com distinção sendo chamado a ocupar diversos cargos, entre os quais: Inspetor de ensino; professor e orientador educacional do Ginásio Leão XIII, antigo Ateneu Piauiense; professor e diretor da Escola Técnica de Comércio de Teresina, fundada por dois outros grandes mestres, Moaci Ribeiro Madeira Campos e Felismino de Freitas Weser; professor e diretor da Escola Normal; professor do Liceu Piauiense; chefe da divisão de inspeção e serviço de estatística educacional; e, por fim, membro do Conselho Estadual de Educação. Dessa forma, observa-se que na qualidade de educador teve seu trabalho, de certa forma, reconhecido no Estado, galgando as melhores funções e lecionando nas principais escolas. Desse período, pode-se citar o testemunho do também educador de grandes méritos, Prof. Moaci Ribeiro Madeira Campos, em entrevista concedida em janeiro de 1994, ao Prof. Erasmo Celestino:

 

“[Odilon Nunes era] uma personalidade ímpar, simples, séria e de comportamento inatacável, tanto na condição de cidadão como de educador – duas coisas muito ligadas. Dele guardo exemplos de cidadão e de grande educador a serviço do seu país, consciente de que um povo analfabeto, sem educação, sem cultura, jamais deixará de ser um povo escravo. [...]. No meu Colégio ele foi, não apenas professor de História, mas também orientador educacional no curso primário, e já na etapa final da Escola Técnica de Comércio, lá esteve como diretor, durante mais ou menos três anos” (CELESTINO, 1994:41).

 

Vencida essa fase, no ano de 1956, Odilon Nunes vai conhecer o Prof. Raimundo Nonato Monteiro de Santana, editor da revista Econômica Piauiense, e idealizador do Movimento de Renovação Cultural, que punha em debate as principais questões da época. Então, insere-se nesse movimento intelectual, editando de 1957 a 1960 cinco monografias e uma conferência na referida revista. Também, a Súmula de História do Piauí(1963), cuja primeira edição ofereceu ao referido movimento, sendo a segunda realizada em 2001, sob os auspícios da Academia Piauiense de Letras. Sobre essa fase e o princípio da amizade com Odilon Nunes, relembra o citado R. N. Monteiro de Santana, ex-presidente da Academia Piauiense de Letras, enfatizando o lado humano do historiador:

 

“O homem simples e bom que ele é me cativou. As discussões intelectuais não impediram o nascimento de profunda amizade, que se prolongou até o lar. Há uma estima sincera entre as nossas famílias. Mas, na oportunidade, desejo falar somente do historiador, aliás, um dos maiores historiadores piauienses.

‘Sua contribuição à historiografia piauiense é, não só relativamente grande, mas original e séria. (...). Odilon Nunes, na sua vasta pesquisa, revelou aspectos interessantes da formação política do Piauí, de sua evolução econômica e social. Assim, ao tratar do Rio Parnaíba, que nenhuma importância teve na colonização, ou ao estudar a gênese das primeiras vilas piauienses, como iniciativa única do Governo, com o objetivo de satisfazer imposição do fisco e policiamento, oferece contribuição original. Seu conhecimento seguro e profundo da história piauiense permitiu que ele chegasse a uma periodização satisfatória da evolução social do Piauí.(....)

 ‘E todo esse esforço vem sendo feito com seriedade. Odilon Nunes conhece nosso Arquivo por dentro. Basta ler os trabalhos publicados na Econômica Piauiense, para comprovar esse aspecto. Predominam as referências dos documentos originais. E é incansável nas citações” (cf Súmula).

 

Então, após os referidos anos sem publicar, Odilon reestréia com cinco monografias e uma conferência publicadas na Econômica Piauiense, quais sejam:

 

Geografia e História do Piauí Seiscentista, publicada na revista Econômica Piauiense (vol. I, n.º 04, 1957). Reeditada pelo governo do Estado como terceiro volume das coleções “Monografias do Piauí” (Série histórica, 1972) e Estudos de História do Piauí(1983), desta feita com o título de Primeiros Currais.

 

Economia e Finanças: Piauí Colonial (Econômica Piauiense, vol. II, n.º 1, 2, 3 e 4 – 1959). Também reeditada pelo governo do Estado, com o mesmo título, no quarto volume das mesmas coleções.

 

Domingos Jorge Velho (Econômica Piauiense, vol. IV, n.º 01 – março/1960). Reeditada pelo governo do Estado, no primeiro volume das mesmas coleções, com o título de Devassamento e Conquista do Piauí.

 

O Piauí e seu povoamento (Econômica Piauiense, vol. IV, n.º 03 – setembro/1960). Reeditada no segundo volume das aludidas coleções, com o título de O Piauí, seu povoamento e seu desenvolvimento.

 

A segunda dessas monografias, Origem das Fazendas Estaduais(1958), mais tarde(1981) o autor a incluiu na coletânea Depoimentos Históricos, sob o título As fazendas de Mafrense: hoje fazendas estaduais. E a conferência sobre a Independência do Piauí (Econômica Piauiense, vol. IV, n.º 04 – outubro/1960), só recentemente foi reeditada na Revista da Academia Piauiense de Letras. O autor, acertadamente, não a incluiu nas primeiras edições de seus Estudos de História do Piauí.

 

Sobre essas monografias, todas baseadas em fontes primárias, quando da terceira edição(1983), embora seja assinalada como segunda, desconsiderando a da revista, o autor expõe seu desejo de divulgá-la fora do Estado, em um só volume da coleção Brasiliana, mantida pela Companhia Editora Nacional. E, embora obtendo parecer favorável graças ao mérito que lhe é intrínseco, não logrou êxito essa edição nacional, por falta de apoio do Estado e da UFPI, que teriam de entrar com contrapartida em coedição, valendo-se estes da surrada alegação de falta de verbas. Perdeu o Piauí, que ainda hoje não é reconhecido lá fora e, por ignorância de autores nacionais, permanece com sua história praticamente excluída dos livros de História do Brasil.

 

Pois, a fim de conferirmos o valor dessas quatro monografias, vejamos, em síntese, os assuntos que abordam:

 

Devassamento e Conquista do Piauí, é obra valiosa onde Odilon Nunes rechaça item por item a corrente dita clássica, formada por figurões nacionais (Varnhagen, Taunay, Barbosa Lima Sobrinho e, também, Alencastre), que nega a participação de Domingos Jorge Velho na formação histórica do Piauí. Ao contrário de alguns autores que o antecederam, privilegiando uns documentos em detrimento de outros, ao sabor da tese defendida, Odilon Nunes usou método diferente, conciliando todos os documentos existentes, embora aparentassem contradição. E os conciliou em sintonia com o testemunho de Rocha Pita(1730), a quem muito valorizou, por ter sido contemporâneo de Domingos Afonso Sertão e Domingos Jorge Velho, de cujos personagens e também de amigos e familiares, colheu depoimentos testemunhais. Foi esse o seu método de pesquisa. Agiu assim porque entendeu não poder “recusar um documento sob a leviana alegação de que é confuso e falso” (p.33), como fizeram alguns, e exatamente “de seu conjunto emerge a verdade histórica”(p.34). Dessa forma, provou o acerto de Rocha Pita e Pereira da Costa na defesa da participação do cabo paulista na formação histórica do Piauí. Demonstra, pois, com segurança, que Domingos Jorge Velho veio de S. Paulo para o Piauí, onde se estabeleceu com fazendas e no preamento de índios, em 1662 ou 1663. E em julho de 1687, partiu da bacia do Parnaíba, à frente de numerosa tropa, composta em sua maioria por índios piauienses das tribos Aroás ou Aroases e Cupinharões, a fim de aniquilar o quilombo de Palmares, nas Alagoas. “Antes, porém, de alcançar as terras palmarenses, foi incumbido de desassombrar os sertões de Piranhas e Açu, nas terras do Rio Grande”(p. 8). E demonstra que foi esse desvio de rota o motivo da tese discordante, encabeçada por Varnhagen, cuja autoridade, em história, para alguns, “é tamanha que suas afirmações não admitem debates”(p. 11). Todavia, “as notas de Capistrano [de Abreu] e Rodolfo Garcia a sua História Geral do Brasil estão aí a mostrar que o revisionismo em História será sempre, em edições posteriores, parte integrante de toda obra de vulto” (p.11). E noutro trecho chega a afirmar que se fosse vivo, diante dos documentos depois encontrados, não hesitaria Varnhagen em admitir o domicílio do cabo paulista na bacia oriental do Parnaíba. Ademais, foi o próprio Domingos Jorge Velho quem declarou textualmente em 15 de julho de 1694: “nenhuma renitência fiz em largar tudo e pôr-me ao caminho de ao redor de 600 léguas desta costa de Pernambuco por mais áspero caminho, agreste, e faminto”. E noutro trecho: “eu desci do Piauí, aonde eu estava aposentado como já atrás tenho dito”, trazendo índios “da casta dos Aroás e Cupinharões”. Ora, qualquer piauiense de conhecimento mediano sabe que essas tribos eram piauienses, inclusive os Aroás foram aldeados onde é hoje a cidade de Aroases, na região valenciana, ali tendo nascido a vila de Valença do Piauí, depois mudada para o lugar Caatinguinha, localização atual. E tendo saído do Piauí, na forma já dita, confessou o velho cabo de guerra: “me mandou o Governador Geral que então era Matias da Cunha, torcer caminho e fosse acudir a Capitania do Rio Grande que a infestava no Açu e Piranhas, o Tapuio levantado Janduim”(Documento n.º 01). E se não bastassem essas afirmações do próprio cabo paulista, sua viúva Jerônima Cardim Fróis e mais treze companheiros daquele, assinam petição requerendo sesmaria, em 1705, onde afirmam: “o mestre de campo e subalternos oficiais, tinham erigido sua morada e habitado o rio Poti que quer dizer rio ou água de Camarões e o rio Parnaíba e (...) neles tinham feito suas povoações com suas habitações, com suas criações(...) como com efeito entrou e povoou todo o Piauí e Canindé em companhia da Casa da Torre de Garcia D’Ávila e defendendo as fronteiras do Maranhão(...) que as sesmarias que pretendem nos rios Camarões, e Parnaíba (...)desde as nascenças do dito rio Poti, ou Camarões, até onde se mete naquele da Parnaíba (...) pelas haverem conquistado, franqueado a habitação e cultura dos brancos, para afugentarem os tapuias seus habitadores acrescentando quantias consideráveis a prêmios reais assim pela Repartição desta Procuradoria, como do dito Estado do Maranhão” (documento n.º 02). Ora, além dos rios piauienses, tendo o Poti como afluente do Parnaíba, vê-se a referência ao Maranhão, não podendo ser, assim, Alagoas ou o Rio Grande do Norte, como querem alguns que escreveram no Rio de Janeiro, desconhecendo a geografia e as tribos nativas do Piauí. Rocha Pita, que foi contemporâneo de Domingos Afonso Sertão, afirma que “neste descobrimento se encontrou [ele] com Domingos Jorge, um cabo paulista poderoso em arcos (...) [que] chegara àquela parte, pouco tempo antes, que o Capitão Domingos Afonso a entrasse” (Documento n.º 03). Mesmo essa é a tradição do Piauí, que passou de pai para filho, não tendo ninguém credibilidade de mudá-la sem documento categórico. Por fim, além de termos convicção própria, não temos receio de afirmar que esses figurões são gigantes em termos nacionais, mas em história do Piauí, são pequenos para contrariar a orientação de Odilon Nunes. E isso ocorre porque as preocupações daqueles foram gerais, vez que escreviam a história do Brasil, ao passo que Odilon Nunes foi um pesquisador específico, de uma história só, a história do Piauí, tornando-se, assim, autoridade nesse assunto. Ao contrário de seus contendores, Odilon Nunes foi um homem de idéia fixa, a construção da história do Piauí em bases sólidas, empregando toda a laboriosidade de sua vida nesse mister. E como preveniu o muito vivo defunto Brás Cubas, personagem de Machado de Assis, “Deus te livre, leitor, de uma idéia fixa”. E foi essa ideia fixa que o tornou a maior autoridade em história do Piauí.  E volta a esse tema novamente para responder colocações de Barbosa Lima Sobrinho, autor de Devassamento do Piauí, com Um desafio da historiografia do Brasil, onde reforça sua tese com novos argumentos. Então, aquele grande brasileiro calou-se, face aos argumentos irrespondíveis do aguerrido historiador piauiense. Porém, Odilon Nunes, após concluir vitoriosamente a sua tese de que antes de partir para Palmares, Domingos Jorge Velho morava no Piauí, sempre modesto, afirmou: “Estamos prontos a mudar de opinião, se surgir fonte documentária de que resulte uma síntese contrária à que chegamos; porém, dentro dos recursos de que dispomos para a pesquisa, a síntese que apresentamos é a mais consentânea com o verdadeiro escopo da História”. Afinal, defendia que o revisionismo em história, seria sempre parte integrante de toda obra de vulto. Nesses termos, passemos à segunda monografia do autor.

 

O Piauí, seu povoamento e seu desenvolvimento. Nesta obra, Odilon Nunes nos apresenta uma bela síntese da formação histórica piauiense, desde as primeiras entradas à formação da sociedade, enfatizando a contribuição das três principais raças: o branco, de duas vertentes sociais, sendo a primeira e em menor número, formada por elementos que se estabeleceram patriarcalmente “à sombra bonançosa dos currais(...) [constituindo] pequenas ilhas demográficas em que se exercitava o verdadeiro espírito cristão”(p.20), convivendo ao lado de um maior contingente de nômades, de má-procedência, que não se fixava em lugar nenhum, e “entra e sai, como bem lhe parece, e segundo mais convém aos seus interesses”(p. 19); entre esses últimos “eram recrutadas as forças para o esmagamento do índio e o estabelecimento do clima de desordens”(p. 20); ressalta também a contribuição do ameríndio, “em nossa formação étnica no primeiro século da colonização”, acrescentando que “em fins do século XVII, havia índias que certamente eram amásias dos curraleiros” (p. 31); porém, esforça-se em demonstrar que essa contribuição não foi tamanha “como presumem alguns historiadores e etnólogos” (p. 31); e, ainda, se refere ao negro trazido à força da África, que também contribuiu em nossa formação. Por fim, indaga: “que se poderia esperar da descendência daquela gente, liderada por vaqueiros dissolutos e prepotentes, abandonadas as suas tradições, sem a ação da catequese e cujas autoridades eram os principais autores da desordem?” (p. 32). Também, volta a enfatizar uma ideia que o acompanha em todo o conjunto de sua obra, de que o Piauí foi corredor de migrações, onde se encontraram os mais importantes grupos de ameríndios que povoaram o Brasil(p. 18/19). Critica, com muita propriedade, a falta de critério, que não o de favorecimento gratuito e corrupção, na concessão de sesmarias, em prejuízo dos que desbravaram a terra, fato que foi preponderante na luta aberta entre posseiros e sesmeiros pela posse da terra piauiense. E após outros aspectos, como descrição da terra e abordagem das profissões dos primeiros colonos, conclui analisando a guerra da Independência e o posterior governo de Manuel de Sousa Martins. Dessa forma, pode-se dizer que esta é uma monografia substanciosa, onde o autor apurou os assuntos com o maior cuidado, retirando-lhe os excessos, a fim de diminuir-lhe o volume sem prejudicar o conteúdo. É, pois, sua primeira tentativa de resumir a história do Piauí, o que faria mais tarde na Súmula e nas Pesquisas, esta última sua obra-prima. Constitui-se a monografia em referência, num texto leve, gostoso de ler e que apresenta uma síntese interessante do Piauí colonial, abordando, inclusive, temas dissecados com maior profundidade nas outras monografias que compõem esses Estudos. Pois, é excelente para quem quer ter, em pouco tempo, uma visão global da formação histórica piauiense.

 

Os primeiros currais constituem excelente análise do Piauí colonial, desenvolvidas a partir de reflexões sobre a Descrição do Sertão do Piauí, do padre Miguel de Carvalho(1697), divulgada por Ernesto Ennes, em 1938. Em face do extraordinário conhecimento da história piauiense, vai Odilon Nunes dissecando a Descrição daquele religioso, checando cada informação e cotejando com outros dados de pesquisa, de forma a se constituir em interessante monografia. É a primeira vez em que aquela Descrição vai analisada em profundidade, abrindo caminho para outros estudiosos, como fizera mais recentemente o historiador Cláudio Melo. Em sua síntese, Odilon Nunes elabora tabelas, formula gráficos e vai identificando os primeiros curraleiros do sertão do Piauí, as primeiras fazendas e também na toponímica atual aqueles acidentes geográficos indicados pelo religioso que percorrera a bacia oriental do Parnaíba no final do século XVII. Lamentando o pouco interesse que despertou aquela Descrição nas autoridades reinóis, Odilon Nunes a define como as primeiras páginas de nossa história e de nossa geografia, descrevendo a terra, a flora, as pastagens nativas, os rios e lagoas; cadastrando as fazendas e moradores; indicando o incipiente comércio; nominando as tribos indígenas, narrando a vida dos primitivos curraleiros, enfim, descrevendo sua vestimenta, alimento, trabalho, falando da bravura e penúria, das fraquezas e esperanças daquela sociedade em formação. Por fim, julga “o feito dos vaqueiros nomeados pelo Pe. Carvalho uma das façanhas mais notáveis do período épico da conquista do Brasil”. Comenta que a princípio pagavam rendas aos sesmeiros, mais tarde, porém, se rebelando “contra essa arbitrariedade, causticada desde os primeiros dias por D. Francisco de Lima, pelos padres Carvalho e Ascenso Gago e, mais tarde, por João da Maia da Gama”. E conclui dizendo que venceram eles também nessa nova luta, sendo “a primeira vitória da liberdade, em terra piauiense”(p. 29). É essa, de fato, a conclusão de um piauiense apaixonado “que consagrou toda a sua vida à História do Piauí, sem outro objetivo que o de ser útil à boa terra”.

 

Economia e Finança: Piauí Colonial – nessa bem elaborada monografia o autor se aprofunda na formação econômica do Piauí, analisando-a desde seus primórdios até a proclamação da Independência. E, porque a história econômica do Piauí colonial se confunde com a história de sua pecuária, vai narrando a formação dos primeiros currais, cujos primeiros rebanhos vieram do recôncavo baiano, em marcha lenta, até atingirem o rio S. Francisco e dali a bacia parnaibana. Então, Odilon Nunes analisa o crescimento fastidioso desse rebanho, o fortalecimento da economia piauiense e posterior exportação de gado para o restante do nordeste e até para Minas Gerais. Interessante é o capítulo em que compara a formação da pecuária dos agrestes piauienses com a dos pampas gaúchos, cujos rebanhos silvestres cresceram vertiginosamente, suplantando os do Piauí e tomando-lhe a primazia comercial na região das Minas Gerais durante o segundo quartel do século XVIII. E conclui que esse fato, aliado às grandes distâncias e dificuldades de transporte para todos os mercados, inclusive Capuame, na Bahia, ocasionando perdas consideráveis nas boiadas, umas morrendo outras chegando magras e estropiadas, provocaram a derrocada da pecuária piauiense. Por todos esses fatos, conclui que o Piauí foi “alçado à categoria de Capitania, quando se lhe deparava dificílima conjuntura econômica” (p. 56). Aborda ainda o anterior comércio de âmbar e pau violeta feito pelos índios no litoral, o efêmero comércio de carne com o Pará, a partir de 1770, além de outros aspectos da economia piauiense, como a ausência de moeda, a entrada de algum ouro vindo das Minas, a busca de novas fontes de riquezas, assim como o comércio de couro em cabelo, solas, peles, raspas e outros produtos da pecuária. Conforme se disse, durante todo o período colonial a economia piauiense foi sustentada apenas pelo comércio de gado vacum e cavalar, com lavoura apenas de subsistência. Por fim, após abordar as diferenças existentes entre a colonização do Piauí baseada na pecuária e a das regiões mineradoras, acrescenta com um sentimento nacionalista: “A mineração foi o mais criminoso saque perpetrado no Brasil colonial. Toda aquela riqueza saiu, e não foi nem mesmo para Portugal. Consola-nos, todavia, a população que nos deu, os monumentos de arte que nos legou, e ter precipitado a revolução industrial que, sob determinados aspectos, trouxe tantos benefícios à humanidade, e talvez tenha sido o mais preponderante fator para a hegemonia do mundo ocidental. Incontestavelmente foi também a principal causa do aprofundamento da colonização portuguesa, no continente sul-americano, quase reduzindo à orla marítima a colonização espanhola” (p. 71). Portanto, ancorada em ampla pesquisa, escrita em linguagem simples, clara, concisa e elegante, essa monografia é uma ótima pedida para quem deseja entender a formação econômica do Piauí.

 

Conforme dissemos anteriormente, após essas monografias, Odilon Nunes publica Súmula de história do Piauí(1963), um texto-síntese sobre nossa história, já aqui, a nosso ver, uma ampliação do esforço desprendido em O Piauí, seu povoamento e seu desenvolvimento. Para o Acadêmico Fonseca Neto, historiador dos mais probos do Piauí e ex-diretor do Centro de Ciências Humanas e Letras da UFPI, esta Súmula “cumpriu e ainda agora cumpre papel de suma importância no aprimoramento intelectual do povo de hoje, tão carente de bons textos, textos de qualidade. (...); parece foi feito de um só sopro de inteligência, calcado numa cultura geral consistente, interfaciada com milhares de textos e documentos que então compulsava nos arquivos do Estado, notadamente no Arquivo Público, que foi seu ambiente predileto de labor, oficina de sua ação no manejo das artes e ‘seduções de Clio’”(“Summa Odilonensis. Que Súmula!”, texto de apresentação à 2ª edição do livro. p. 20).

 

Após esse festejado livro, o autor lança o mais completo trabalho de pesquisa até hoje publicado sobre a história do Piauí. Trata-se de “Pesquisas para a história do Piauí”, uma “obra superanotada, subanotada, quase documento em estado bruto, uma provocação aos arredios e preguiçosos do contato com as primárias fontes. Não há tema, conceito, episódio, dos que enuncia na literariamente bem-elaborada ‘Súmula...’, que não encontre agora tratamento documental acurado, nos limites de certa positividade. Nesse sentido, a ‘Súmula...’ é uma espécie de treiler, que ao contrário dos convencionais destes, revela as linhas gerais do enredo, iluminando os episódios centrais da trama, para revelar, às escâncaras, o(s) desfecho(s)”, conforme observação do citado Fonseca Neto (op. cit). Por outro lado, lembra o ensaísta e crítico literário M. Paulo Nunes, presidente do Conselho Estadual de Cultura, que “Odilon Nunes possui uma obra historiográfica bastante vasta, toda ela, entretanto, convergindo para a sua obra básica, seminal, que é Pesquisas para a história do Piauí” (Odilon Nunes, In “Figuras notáveis da história do Piauí”, APL/Meio Norte, 2001). De fato, essa obra foi publicada em quatro volumes, traçando um painel pormenorizado e seguro de toda a história do Piauí, desde as origens até a administração de Vitório da Costa, no final do século XIX. No primeiro, são tratados todos os aspectos relevantes ocorridos desde a pré-história até o final do período colonial; o segundo aborda as manifestações nativistas e guerra da Independência, assim como manifestações republicanas no Piauí; o terceiro traz farta análise e um manancial de informações documentais sobre a Balaiada no Piauí, além de estudo sobre o Visconde da Parnaíba; por fim, o quarto volume traça um vasto painel da província, abordando as lutas partidárias, a busca de organização administrativa, escola e trabalho, mudança da capital, transporte e comunicações, fontes econômicas, a guerra do Paraguai e seus reflexos na Província, a Abolição, catequese e as tentativas de colonização, as condições sanitárias, a educação, a cultura e a administração de Vitório da Costa. Entende M. Paulo Nunes, que esta obra constitui “um painel magnífico de nossa história, traçado com abnegação, descortínio e um grande amor à terra” (op. cit). Não há dúvida, pois, que Pesquisas para a história do Piauí é a mais importante obra até hoje escrita sobre a história do Piauí, seja pelo pioneirismo, pelo volume de informações e analises que traz ou pela segurança que transmite em face de ser toda ela bem documentada. Portanto, somente esta obra seria suficiente para consolidar o nome de seu autor como um dos principais escritores do Brasil.

 

Pois, concluída sua obra de fôlego, o grande mestre de nossa história passa a abordar alguns aspectos específicos dessa mesma história, aprofundando temas ali abordados. Assim, é que publica no jornal Voz do Piauí em 2 de abril de 1967, um artigo abordando as origens de sua terra São Gonçalo de Amarante; publica também A mudança da capital de Oeiras para Teresina, de apenas treze páginas (Teresina: PMT, 1967), O Piauí: escorço histórico (sem data); e, o já mencionado Um desafio da historiografia do Brasil (1979), versando sobre a presença de Domingos Jorge Velho no Piauí antigo, tema recorrente de sua obra. Em 1981, publica Depoimentos históricos, conjunto de ensaios escritos há algum tempo, versando sobre as origens do Piauí, especialmente a criação das primeiras freguesias e igrejas de N. Sra. da Vitória, em Oeiras; N. Sra. do Carmo, em Piracuruca; N. Sra. da Graça, em Parnaíba; e, São Benedito, em Teresina; também aborda a transferência da capital e construção dos primeiros prédios de Teresina. Conforme foi dito, uma anterior monografia foi inserida nesse trabalho, As Fazendas de Mafrense, hoje Fazendas Estaduais, onde discorre sobre as origens dessas e sua importância na economia piauiense, constituindo-se em excelente estudo; por fim, traz o importante relatório apresentado ao governador Gabino Bezouro, pelo agrônomo Ricardo Ernesto Ferreira de Carvalho e as impressões de viagens do diretor do Museu de Viena, Frans Steindachner, que chefiou missão científica no sul do Piauí(1903); comentando o citado relatório, diz Odilon Nunes: “Quando escrevemos ‘O Piauí, seu povoamento e seu desenvolvimento’, não conhecíamos ainda os trabalhos de Ferreira de Carvalho. Deixamo-nos influenciar pelos estudos de Dodt, Frederico M. Schimidt e Alarico J. Cunha Júnior. As publicações desses ilustres especialistas, que viveram no Piauí e aqui trabalharam, nos conduziram a uma conclusão pessimista em relação às possibilidades do Piauí, para a exploração agrícola” (p. 100).

 

Mais tarde, respondendo a críticas formuladas contra sua obra, publica Casos e cousas da historiografia piauiense (Revista Presença, 1983). Também, sem data é Documentos coligidos. Por fim, em 1987, já na avançada idade de 88 anos, publica Raízes do Terceiro Mundo, um corpo estranho em sua obra, na expressão de Erasmo Celestino, por abordar temas não piauienses. Afora essa obra, ainda restam alguns discursos esparsos em órgãos da impressa.

Em síntese, a obra de Odilon Nunes é considerada fundante da historiografia piauiense. Sobre o conjunto de sua obra, acrescenta Erasmo Celestino, que “resulta uma história que se quer geral, total, globalizante – da pré-História às movimentações relacionadas à proclamação da República. (...). É uma história que se pretende objetiva, imparcial, verdadeira, científica, fundamentada na documentação primária por ele encontrada”. Para esse estudioso, “o autor está em permanente debate com esse referencial teórico e consegue rompê-lo para formar opinião, fazer revisão historiográfica, criticar, analisar, sistematizar, interpretar, dialogar com o documento, captar a essência do devenir histórico piauiense e estabelecer suas relações além-Parnaíba e além-Ibiapaba. É um esforço hermenêutico-emancipatório. Não é uma história local desconectada, descontextualizada”. Para esse estudioso que produziu demorada análise da obra do autor em comento, “a obra odiloniana apresenta-se una e requer, para a sua análise, apreciação abrangente, não-minimalista. Propõe encontrar as raízes da piauiensidade e traçar-lhe o perfil na linha que tem muito de varnhageniana, ao se preocupar em coletar dados, elaborar uma história geral, heroica, voltada à construção da nacionalidade”. Conclui esse estudioso, que “a obra odiloniana, de inflexão fundadora, é construída com base em documentação primária. E a ação de descobrir documentos, e de investigá-los, dá-se numa época em que não existe no Brasil nenhum centro de pesquisa nessa área. É uma invenção da potencialidade de se estudar a História do Piauí”.

A exemplo desse substancioso trabalho de Erasmo Celestino, vêm surgindo no Piauí alguns poucos estudos de historiografia tendo por tema obras locais. Porém, forçoso é dizer-se que algumas dessas análises, principalmente as mais antigas, foram feitas quase exclusivamente sob o ponto de vista literário, estilístico e estético, com críticas descabidas à obra histórica de Odilon Nunes. Na verdade, virou lugar comum criticar-lhe o estilo, embora reconheçam o valor intrínseco da obra e a notável contribuição que ela trouxe à historiografia piauiense. De qualquer modo, isso é uma injustiça, vez que Odilon Nunes é o maior historiador do Piauí e foi quem mais contribuição trouxe aos estudos históricos piauienses. Também, a obra histórica deve ser vista e analisada por seu valor intrínseco, pela contribuição que trouxer aos estudos históricos e não pelo critério literário, porque este não é definitivo. Um grande pesquisador, necessariamente, não tem de ser um grande escritor, porém, em sendo, um tanto melhor. No caso de Odilon Nunes, juntou-se o talento de escritor ao de grande pesquisador, no que ganhou o Piauí. Já nasceu feito, apenas aprimorando seu estilo e seu método de pesquisa, como autodidata, através da leitura dos clássicos. E graças ao seu trabalho beneditino, o Piauí ganhou uma obra una, coerente e total, no dizer de José Honório Rodrigues. Deixou, pois, Odilon Nunes, uma obra formidável, profunda, original e insuperável, a nós só restando apreciá-la, divulgá-la e dar-lhe continuidade.

 

(O presente texto serviu de apresentação à reedição de Estudos de História do Piauí, conjunto de cinco monografias de Odilon Nunes, organizado pelo autor, e lançado na Coleção Centenário,  da Academia Piauiense de Letras).