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[Paulo Ghiraldelli Jr.]

Pondé e Karnal são bonzinhos, eles divergem, mas polidamente. Na verdade, não divergem. São posers.  Simples midiagogos posers. Conversam amigavelmente sobre orelhas de livros que não leram e, por isso mesmo, por não acreditarem em nada do que dizem, podem falar de modo tão pomposo quanto Renato Janine Ribeiro. Agora vamos ter Bial também “conversando”. E na propaganda do programa que virá ele diz: vamos conversar no sentido contrário do ódio. Tudo no Brasil é preciso de ser feito pela regra do bom-mocismo. Um dos nossos melhores intelectuais, Monteiro Lobato, tinha verdadeira ojeriza por essa nossa mania de abafamento.

 
Monteiro Lobato foi acusado posteriormente de racismo, obviamente por gente inculta, por ter feito certo elogio à KKK americana. Não entenderam o propósito de sua fala. Ele não deu apoio à KKK. O que ele queria dizer é que os Estados Unidos tinham o brio de viver o conflito, enquanto que aqui permanecia a ideia de que nos amamos, que somos os gentlemans dos trópicos. Até hoje falamos isso dos argentinos e uruguaios: eles são os “brigões”. Mas até para falarmos isso, usamos de amenidades, dizemos que eles, no futebol, tem “raça”. Temos vergonha de ter raça!
 
Por que o mundo todo pode viver e resolver seus conflitos, e nós não? Por uma razão simples: ninguém viveu tanto tempo a escravidão quanto o Brasil. Fomos o último império escravocrata. Em nenhum lugar do mundo moderno a escravidão de negros durou tanto. Depois disso, tivemos duas ditaduras, a de Vargas e a dos militares de 64, isso sem contar o regime coronelístico oficialmente vigente durante os quarenta anos da Primeira República. Uma cultura assim formada não pode mesmo admitir a ideia do conflito: todos devem ser “bons mulatinhos”. O grito é sempre a violência dos de baixo. A violência verdadeira é a lei, que vem dos de cima, mas sendo lei, tem parentesco com a legitimidade e com a racionalidade, aquilo que pode ser feito. Então, no Brasil, quem grita perde a razão. A razão está associada ao capachismo ou ao modo sorrateiro e rastejante de ser empregado. Os anarquistas do começo do século aqui no Brasil, obviamente italianos, chamavam esse costume brasileiro de ser bonzinho como o de “lambe cu”. Aqui no Brasil os debatedores na TV ficam sorrindo e passando as mãos nas nádegas uns dos outros. Não gritam, no máximo dão gritinhos de “ui ui” quando a mão avança mais.
 
O Brasil é um lugar de violência policial. Mas policiais não gritam, atiram. Quem grita é o inocente que recebeu os tiros. Se toca fogo em pneus na sua vila, para protestar contra a chacina policial, então vira o tal “povo do ódio”. O ódio é o grito – assim é aqui, no país da propaganda adrede preparada. O Brasil é o lugar em que todos precisam, para aparecer, serem vítimas caladas. Até a direita, no Brasil, que no mundo todo é violenta, aqui é chorona e fica pedindo que notem o quanto a esquerda foi violenta. Aqui a jornalista de direita diz que falaram que ela deveria ser estuprada, e então vira a vitiminha, e o Bolsonaro é o cara que vive dizendo que sofreu cuspe e até atentado! E o Lula então, que quando acusado de roubar, começa a chorar! Sem contar o Mercadante, que já chorava no “mensalão”, dizendo que não sabia de onde vinha o dinheiro para a campanha. Bastou um cair na lista da Lava Jato, e a próstata fica ruim, vira doentinho. Aqui é necessário, para ter razão, ser o submisso, real ou falsamente, ser o chorão, ser o coitado, principalmente se não se é verdadeiramente coitado. O Brasil não tem maremoto, terremoto, vulcão e não tem briga, nem ódio. É o paraíso na Terra. Assim ensinavam meus professores, que evitam falar de Canudos e, quando se referiam às chacinas do Duque de Caxias, chamavam-no de “pacificador”. O Duque não matava, pacificava.
 
No Brasil ganha quem não acredita em nada, quem pode debater na TV vestindo saia cor-de-rosa e usando cachimbo para esconder quer o torto da boca foi feito por outro instrumento. E agora, se alguém fala qualquer coisinha de modo mais indignado, vem o tonto da Corte dizer que é “ódio”. No Brasil não podemos nos dividir nem nos dispersar? Lembram da frase energúmena do Tancredo Neves, “não vamos nos dispersar”? Tínhamos de nos manter unidos, claro, mas em torno dele!
 
Uma sociedade que não pode ter um Sartre dizendo que o “inferno são os outros” não conhece a alteridade e, portanto, não consegue formar sujeitos autênticos e muito menos querer mesmo estar em democracia liberal. Torna-se de modo muito rapidamente acrítico, uma pessoa gerada sem o Outro, e lugar em que vive passa a ser o de manadas de narcisos chorões. Não vai adiante um lugar assim. Vira a piada do “país do futuro”.
 
Paulo Ghiraldelli Jr., 60, filósofo. São Paulo, 24/04/2017
 
Foto: Bial beijando seu patrão.