O japonês e o soldado

[Chagas Botelho] 

O motorista da UBER era japonês. Falava um português enviesado. Ainda se adaptava ao vernáculo de Machado de Assis. Perguntou-me, ao olhar pelo retrovisor e me ver esparramado no banco traseiro, se ele obedecia ao GPS ou se eu sugeria alguma rota alternativa. Disse-lhe apenas que obedecesse à voz feminina. Acrescentei, que ouvisse sempre as mulheres. Ele riu com os olhos fechados ao extremo. Fechados como ostras.

Puxei conversa com o nipônico. Quis saber dele como andava a aprendizagem com a nossa Língua. Ele acentuou que a música brasileira era a sua grande aliada. Com ela explorava frases para usá-las no dia a dia. Enquanto trabalhava, ouvia a música e repetia as estrofes escutadas. Assim, assimilava o que chamou de português complexo. Tornou-se um papagaio caseiro. Desses que repete tudo o que ouve. Ouvia e repetia. Falou rindo dessa sua experiência, num sotaque trôpego.

Colocou uma faixa para tocar à guisa de demonstração. Uma de suas aulas sonoras. Estava treinando antes do meu embarque. Era uma canção antiga, de um cantor já falecido. Aliás, extraordinário cantor. A letra era simples, fácil, didática e de uma sentimentalidade arrebatadora. Ouvi um pouco e aprovei a letra romântica. O motorista da terra do sol nascente confidenciou que gostava muito daquela canção e do modo interpretativo.

Não por menos. Tratava-se do clássico “Não Tem Jeito Que Dê Jeito”, do inigualável Raimundo Soldado. Veja que coisa, o mega-star maranhense, sucesso absoluto no norte e nordeste, ali, naquele instante, ensinava a nossa maior riqueza ao simpático japonês. Intercâmbio cultural de primeira grandeza. De chofre, o oriental me indagou se conhecia a balada. Comentei que não só conhecia a pérola como já havia entrevistado, num programa de rádio, o seu criador. E que a entrevista ocorreu meses antes do seu falecimento.

Surpreso, o japa arrematou: “e então, ele ensinava mesmo português cantando?”. De alguma forma sim, respondi. Mas ele, o nosso saudoso Raimundo Soldado, o que ensinou mesmo com primazia a muita gente, a muita gente mesmo, foi sobre as dores incorrigíveis do amor.