Deolindo Pereira e esposa Clesci Maria de Sousa.
Deolindo Pereira e esposa Clesci Maria de Sousa.

Reginaldo Miranda[1]

Viver é acumular experiências, mas também contabilizar perdas: da memória, de massa muscular e até de familiares e amigos. Ao longo da caminhada vamos construindo amizades nas brincadeiras de infância, nos bancos escolares, no trabalho e nas relações sociais. Depois, com o passar dos anos, vamos vendo serem elas dissipadas pelas intempéries da existência efêmera. Estamos todos de passagem nessa grande embarcação da vida, cujo momento presente é apenas uma estação na Terra. A propósito, acabo de receber a notícia da perda de um amigo: Deolindo de Sousa Pereira, falecido ontem, com noventa anos de idade.

Era um velho amigo, nascido nos sertões de Bertolínia. Ainda moço, na companhia de seus familiares, mudou-se do Irapuá para fundar o povoado Cágados, na ribeira do Esfolado. Órfão, desde muito cedo teve de assumir as responsabilidades com o próprio sustento, jogando-se de corpo e alma na lavoura. Sua vida escolar foi pouca, o suficiente para apender a ler e escrever. Mais tarde, sentindo que finalizava sua existência, no leito de morte, um tio o chamou e disse-lhe que dali em diante seria ele o responsável pela condução do clã naquele povoado. Casou-se com d. Clesci e teve uma filha, Odirene. Era um homem simples, de estatura baixa, franzino, de voz mansa. Confessou-me que muitas vezes se preocupava com medo de não dar conta das responsabilidades assumidas. Porém, desincumbiu-se muito bem de seu dever.

Essa liderança em sua comunidade, naturalmente haveria de levá-lo à política partidária. Houve tempo em que teve o controle de cem por cento da votação do lugar. Nas eleições de 15 de novembro de 1972, foi eleito vereador da municipalidade, com 267 votos. Na câmara, votou sempre com o Partido, uma sublegenda da ARENA liderada por meu avô, Dermeval Rocha.

Lançado candidato novamente nas eleições de 1976, viu sua base familiar rachar com a candidatura do cunhado João Batista de Sousa, que construía sua liderança no povoado Irapuá, hoje cidade de Sebastião Leal. Disse-me que foi uma eleição muito dura, difícil, mas obteve extraordinária votação, sendo eleito em primeiro lugar, com 299 votos. Esse resultado é bastante significativo porque nessa eleição nosso partido perdeu a eleição majoritária, a primeira vez que isso ocorria desde a fundação do Município.

Com esse sucesso eleitoral foi candidato a vice-prefeito no pleito travado em 15 de novembro de 1982, quando nosso grupo político retomou o controle do poder municipal.

Depois de um mandato de seis anos, vêm as eleições de 1988, quando o candidato Chico Filho apresentou-se na sucessão de Antônio José. Nosso grupo político estava abrigado em grande parte na legenda do PMDB, permanecendo Josias Rocha na legenda do PFL. Formado em julho daquele ano, fui eu quem organizou toda a documentação dos dois partidos, dos candidatos e as convenções partidárias, sendo o delegado da coligação junto à Justiça Eleitoral. Embora o grupo político estimulasse a candidatura de Deolindo Pereira ao cargo de vereador, confessou-me ele reservadamente que estava com receio, preferindo não se candidatar naquele pleito porque temia o insucesso nas urnas. Preocupou-me a situação. Prometi nele votar e, de fato, votei juntamente com meus familiares. Infelizmente, depois de três pleitos vitoriosos não logrou êxito aquele velho amigo, obtendo uma suplência, com 169 votos. Não mais se candidatou, mas nunca perdeu prestígio ou deixou a política, apoiando seus correligionários em todas as diligências partidárias realizadas naquela região. Também, nos festejos religiosos do padroeiro Santo Antônio, a sua casa era o ponto de apoio, com a rede armada e a mesa farta para receber os amigos. Foi um líder de sua comunidade, lutando sempre pela prosperidade da população. Ao sair de cena, já no entardecer da vida, deixa um legado de honra, de dignidade, de simplicidade e de trabalho.

Embora sem muitos estudos, Deolindo de Sousa Pereira era um homem sábio, formado na escola da vida. Para encerrar essa homenagem fúnebre, completar esse quadro de lembranças, recordarei um fato interessante ocorrido em meados da década de setenta. No pequeno quadrilátero do povoado Cágados, desentenderam-se dois moradores, indo às vias de fato, com lesões corporais. Chamado às pressas, correu Deolindo para separar os contendores e apaziguar a situação, em cuja missão foi bem sucedido. No entanto, sabendo do caso, a polícia instaurou inquérito e o promotor ofereceu denúncia, arrolando o vereador como testemunha. Passados alguns meses chega a intimação para a audiência. Então, cada um a seu tempo, procura o amigo vereador para depor em seu favor. Nessa altura, o vereador Deolindo que nada tinha a ver com a confusão, tendo ido apenas acalmar os dois amigos que brigavam, ficou noites insone pensando numa solução. Sabia que conforme seu depoimento perderia um ou outro amigo. Foi quando teve uma ideia genial. Pegou sua caminhonete e foi até à cidade, conversar com o juiz de direito, Dr. Antônio Borges Nunes, um magistrado acessível, sem juizite. Relatou a situação e mostrou-lhe que o processo tinha diversas outras testemunhas, que conheciam os fatos tão bem quanto ele; que sua ausência nenhum prejuízo causaria ao julgamento do feito. Por fim, pediu-lhe um favor: dissesse às partes que vereador não podia ser testemunha em processo-crime. Depois de dar uma gostosa gargalhada, Dr. Antônio Borges resolveu a situação sem comprometer aquele amigo.

Ficam essas lembranças como registro de um tempo e da passagem de um amigo, que deixa saudades. Que Deus o receba em seu reino de glória.

 


[1] Advogado e escritor. Membro titular da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. E-mail: [email protected]