NUNC ET SEMPER: O latim na obra Um Homem Particular
Por Carlos Evandro Martins Eulálio Em: 13/10/2025, às 12H31

Das alturas da noite volta o confuso ressoar de latidos. Acordo para os meus sonhos. (H. Dobal)
Carlos Evandro M. Eulálio
Da Academia Piauiense de Letras
Cadeira 38
No livro Um Homem Particular (ficção) de H. Dobal, publicado em 1985 pelo Projeto Petrônio Portella, o leitor terá a oportunidade de conhecer o H. Dobal contista. Como toda obra literária de qualidade, ela é rica em intertextualidade (diálogo entre textos), aqui entendido como um mosaico de citações, através do qual o texto retoma outros textos. Esse recurso linguístico-literário é empregado por Dobal em seus contos de modo sui generis: o autor dialoga com a própria poesia e transforma em contos alguns de seus poemas já conhecidos. Dobal é intertextual também ao empregar expressões latinas que, em síntese, contêm a essência do conteúdo da mensagem que deseja comunicar. Esse é o foco da leitura que empreendemos no livro Um homem particular, fazendo um detalhado comentário das expressões latinas usadas pelo autor.
Na epígrafe do livro lemos: Velut aegri somnia - como os sonhos de doente. Essa frase foi extraída da Arte Poética, 7 de Horácio. O autor aí refere-se às obras literárias sem entrosamento de ideias, como os sonhos disparatados de um enfermo. Com isso, o autor mostra ao leitor que o seu canto é livre; soa como uma narrativa aleatória; informações e memórias se confundem de modo solto e criativo, Velut é um advérbio de comparação: tal qual; aegri, é adjetivo de primeira classe aeger, aegra, aegrum, quer dizer doente, enfermo. Há o verbo aegróto, -as, -are, estar doente. Somnium, i – substantivo neutro da 2ª declinação latina.
No conto Gleba de Ausentes, lemos a expressão cautus mensor, que em latim significa agrimensor cauteloso, por extensão, cuidadoso, competente. Refere-se ao agrimensor Mário Dobal Teixeira, nominado ficticiamente no conto como Marcos Teixeira. Trata-se da descrição da personalidade do pai. Cautus é o adjetivo de primeira classe cautus, -a, -um, significando precavido, circunspecto. Relaciona-se ao verbo latino cáveo, -es, cavére, acautelar-se, tomar cuidado, da 2ª conjugação.
Em “Amores, amores”. O título do conto está na realidade em latim, o poeta emprega o plural de ámor, amóris, substantivo masculino da 3ª declinação. O plural é amóres, com pronúncia aberta.[1] Nesse conto, logo no início, o poeta cita uma frase em alemão ich liebe dich que significa "eu te amo" e é usada para expressar amor profundo em relacionamentos românticos.
Em seguida cita a expressão latina: Infandum, regina, jubes renovare dolorem, que se traduz: Mandas-me, rainha, renovar uma dor indizível (Virgílio, Eneida, Livro II, 3). É uma expressão célebre de Eneias, personagem da Eneida de Virgílio, expressando relutância em narrar os eventos dolorosos da Guerra de Troia a Dido. Eneas vai contar a Dido seus infortúnios e a ruína de Troia. Na Eneida, Dido foi a rainha fenícia de Cartago que se apaixonou pelo herói troiano Eneias. Essa frase pode ser empregada em situações difíceis, quando nos custa refletir sobre um momento de dolorosa aflição. Temos detalhadamente: Infandum: adjetivo de 1ª classe infandus, -a, -um, abominável, algo que não se deve falar, inconfessável ou indizível; Regina, rainha, referindo-se à rainha Dido, palavra da 1ª declinação, regina, -ae; Jubes é o verbo jubeo (ou iubeo), -es, -ére (jubére), ordenar, mandar. Conjugado na segunda pessoa do singular, indicando "você ordena". Renovare, renovar, trazer de volta ou restaurar (está no infinitivo). Dolórem, vem de dólor, doloris, palavra da 3ª declinação, dor, sofrimento ou tristeza. Essa mesma expressão é empregada no poema Buganvilhas no livro Os signos e as siglas.
O conto A carta-testamento do Desembargador Julião Teixeira narra, em primeira pessoa, as memórias de Julião Teixeira, como profissional frustrado, vivendo o tédio de um casamento que, com a rotina, desgasta-se com o passar dos anos. Nesse conto verificam-se as seguintes expressões latinas: ut áliquid fácere videatur – para constar, isto é, para dar a impressão de estar fazendo alguma cousa (já traduzido pelo autor no próprio texto). É empregada neste contexto da narrativa: “Eis que a magistratura é isto: uma vida ordenada, mas sem sentido. Uma voz monótona zumbindo no calor da tarde, a farisaica observância dos ritos processuais ut áliquid fácere videátur – para dar a impressão de alguma coisa”.
Em seguida usa a expressão “semper eadem” sempre a mesma. Em latim, a frase é composta por "semper" (advérbio sempre) e "eadem" (a mesma). Foi lema da Rainha Elizabeth I, em referência à sua tentativa de manter a estabilidade e a continuidade em seu reinado. No contexto do conto, aplica-se: “A justiça, ela é sempre a mesma”. Segue-se uma outra expressão bem conhecida: Ecce homo – Eis o homem. Palavras com que Pilatos apresentou Jesus aos judeus. (São João, 19, 5, na tradução latina da Vulgata). Geralmente emprega-se essa frase para anunciar a chegada de alguém. No conto, é assim usada:
“Assim, se misturam em mim os elementos, assim pode a natureza deter-se e dizer: ecce homo. Magistrado, proprietário, casado, com filhos criados, com uma vida onde o acaso não acontece”.
Ab intestato – do adjetivo de primeira classe intestatus, -a, -um; intestado. Aquele que não fez testamento, ou que faleceu sem ter deixado testamento. No contexto do conto, lemos:
“Não me assusta morrer ab intestado. O que me assusta mesmo é ter de morrer”.
O narrador conclui o conto dizendo: Timor mortis conturbat me – (O temor da morte perturba-me). Temos então, detalhadamente, os substantivos: timor, -óris (timóris), temor e mors, -is (mortis) da 3ª declinação latina. O verbo conturbo, -as, -are, perturbar, é empregado na 3ª pessoa do presente do indicativo com o pronome me.
Ite, missa est, é o título do último conto do livro. Expressão litúrgica que na missa tridentina (celebrada em latim), precede a bênção final. Traduz-se: Ide, a missa está dita. Ite é o imperativo do verbo ire (irregular). Esse conto relata a história da personagem Calvino Teixeira que, durante a missa, “era arrastado pelas mais pecaminosas imaginações eróticas”.
A II parte desse conto, A Missa das Namoradas, é o mais belo texto do livro. É composto de seis fragmentos em versos, inspirados em mulheres que são evocadas pelo nome. Cada fragmento possui um título em latim:
Intróibo é o título do primeiro fragmento. É remissivo à Alice de Castro. A palavra introibo está na frase “Introibo ad altare Dei”, que se traduz “Entrarei no altar de Deus” ou Irei ao altar de Deus. Detalhando: Introibo é a primeira pessoa do singular do futuro ativo do indicativo de intróeo, -is, -íre, entrar. Assim conjugado no futuro: introibo, introibis, introibit - introibimus, introibitis, introibunt. Essa frase inicia as orações ao pé do altar nas missas em latim e é seguida por “ad Deum qui laetificat juventutem meam”, que se traduz: “...o Deus que dá alegria a minha juventude”.
Segundo fragmento: Gloria in excelsis – Glória nas alturas. Palavras da missa Gloria in excelsis Deo, isto é, Gloria a Deus nas alturas, adaptação de Lucas, 2, 14, na tradução da vulgata. A musa do poema é Beatriz Pereira, sobre quem diz o eu lírico: “Beatriz Pereira com quem falei de separação antes da união que não houve.” Esse poema se expande no conto Innamorata, apaixonada, em italiano.
Terceiro fragmento: Epístola – carta. Palavra de 1ª declinação latina – cada uma das cartas ou lições dos apóstolos a comunidades cristãs primitivas. A musa inspiradora é Luíza Goulart. Esse poema se expande no conto Elegia para Luíza Goulart no céu do Piauí.
Quarto fragmento: Offertório – Nesse poema o eu lírico evoca Elizabeth Bronte, a musa professora de inglês. Ofertório vem do latim "offertorium", que por sua vez deriva do verbo "óffero, ófferre: oferecer". Na liturgia cristã, o termo se refere ao momento em que o pão e o vinho são levados ao altar para a consagração na Eucaristia. A parte da missa em que se oferece a Deus o pão e o vinho; hora das ofertas.
Quinto fragmento: Memento – Lembra-te. Alusão à passagem bíblica: “Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem revérteris – frase que se traduz: Lembra-te homem, que és pó e ao pó retornarás” (Gênese). Eva é a musa desse poema.
O sexto e último fragmento é Orate, fratres – orai, irmãos – Aqui evoca a musa Dalva, nigra sed formosa, negra, mas bela. Detalhando: Nigra é o adjetivo negro, de primeira classe: niger, nigra, nigrum e sed é a conjunção aditiva adversativa, mas. Formosa é o feminino de formosus, -a, -um, adjetivo de primeira classe.
Como se vê, o latim é vivo nas mentes dos grandes escritores. Ao recuperá-lo, nos interstícios de suas produções, os artistas não só demonstram erudição, mas também valorizam e engrandecem o idioma que dá origem à nossa língua portuguesa. Sem falar que os auxilia a encontrar o sentido mais exato da palavra. Aqui vai uma sugestão: leia também O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Ali o narrador emprega o latim de uma forma contextualizada, leve e fácil de se compreender o significado de cada frase, basta que o leitor faça um simples exercício de raciocínio. Agora uma indicação para traduzir expressões latinas de uso mais freqüente: tenha sempre à mão o livro Não perca o seu latim, de Paulo Rónai, da Editora Nova Fronteira.
[1] Indicamos com acento agudo as sílabas tônicas de algumas palavras, apenas para destacar a pronúncia latina.