[Carlos Evandro Martins Eulálio – especial para Entretextos]

Ouço muitas vezes alguém dizer que, quando um autor publica uma obra, esta não mais lhe pertence, mas ao leitor, que,  assenhoreando-se dela, passa a compreendê-la de vários  pontos de vista. Isso decorre do fato de que a obra só vive na medida em que vive o leitor que a interpreta, aceitando-a e por vezes deformando-a. Para Antônio Cândido, a obra não é um artefato passivo de uma única interpretação, dado que o público também não é homogêneo e, portanto, não registra uniformemente o seu efeito.

O crítico afirma que “Se a obra é mediadora entre o autor e o público, este é mediador entre o autor e a obra, na medida em que o autor só adquire plena consciência da obra quando ela lhe é mostrada através da reação de terceiros. Isto quer dizer que o público é condição para o autor conhecer a si próprio, pois esta revelação da obra é a sua revelação.” (CÂNDIDO, 2006, p. 83). 

Para o Prof. José Maria de Sousa Dantas, isso não quer dizer que todos têm o direito de achar o que quiserem, alegando que o texto literário é aberto, muitas vezes deturpando a teoria de Humberto Eco.

Por essa razão, acho temerário apresentar uma obra literária, especialmente tratando-se de autora atualmente tão prestigiada em nosso meio, pela qualidade de suas produções tanto no âmbito da poesia quanto da prosa literária. Na Coordenação de Literatura do Instituto Dom Barreto, tenho acompanhado de perto o  trabalho de Graça Vilhena, como professora  que não se restringe ao preparo criterioso de suas aulas, indo mais além, escrevendo ensaios de natureza didática sempre em sintonia com os modernos procedimentos pedagógicos que atestam a sua capacidade de renomada professora de literatura, carinhosamente acolhida e reconhecida pela Diretora, pelos Coordenadores, por seus alunos,   colegas e funcionário desta escola.

O livro Pedra de Cantaria, a mais recente obra poética de Graça Vilhena, embora preserve marcas do estilo de seu livro anterior, “Em todo canto”, publicado em 1997, em que se constata acentuado viés intimista, retrabalha essa modalidade de escrita, num depurado processo de autoconhecimento e refinado artesanato linguístico, em consonância com o gênero lírico brasileiro contemporâneo, cujas transformações operam-se a partir do surgimento de uma poesia heterogênea e de múltiplas possibilidades estéticas.

Após o modernismo de 1922 e suas sucessivas fases, que culminam com a eclosão das vanguardas brasileiras, entre elas o Concretismo de 1956, cria-se um cenário que fascina o homem citadino. Cria-se uma sociedade em que emergem a tecnologia, a indústria e a ciência em expansão. Por consequência ganham força os novos temas advindos ainda da linha teórica de Baudelaire que resultam na vigência de motivos extraídos do cotidiano, atualizados em procedimentos estéticos cada vez mais flexíveis. A propósito, faço agora um recorte no tempo. Abro aqui um parêntese para inserir o trecho da fala de Menotti Del Picchia proferida no segundo dia da Semana de Arte Moderna: “Queremos libertar a poesia do presídio canoro das fórmulas acadêmicas, dar elasticidade e amplitude aos processos técnicos [...]. Queremos exprimir nossa mais livre espontaneidade dentro da mais espontânea liberdade”. A poesia lírica, até então exclusiva como expressão do eu, torna-se porta voz de um ser que não é mais uno, mas coletivo. Reforço esse ponto de vista com Otávio Paz, ao afirmar que “"As palavras do poeta são também as palavras de sua comunidade. Do contrário não seriam palavras. [...}. O universo verbal do poema não é feito dos vocábulos do dicionário, mas dos vocábulos da comunidade.”

Aliada, pois, às particularidades do poeta, a poesia lírica passa, portanto, a interpretar também o universo coletivo dos homens.

Com essas considerações, procuramos delinear o cenário da lírica brasileira contemporânea em que se insere a poesia da Profa. Graça Vilhena.                                                                                         

Os poemas da obra Pedra de Cantaria em geral expressam o desejo de interpretar o nosso mundo, tendo a memória como principal vetor. O poeta, professor e ensaísta Paulo Henriques Britto, no seu livro Poesia e Memória, destaca a importância da memória para a poesia lírica e como esta pode dialogar com o leitor: “Para o poeta lírico, a memória é um repertório de causas, explicações e justificativas que lhe permitem criar o seu mito pessoal de individualidade única e singular, a ser fruído pelo leitor – o qual, por meio de um processo de identificação, sente-se gratificado ao constatar que também seu eu, tão único e tão singular quanto do poeta, tem algo em comum com ele.” 

 No livro Pedra de Cantaria, a autora resgata a memória que inspira o pensamento e alimenta as palavras. Memória que se liga  ao passado, nutrido de forte carga de recordação, essência do lírico na acepção de Emil Staiger. O poema de abertura comprova essa evidência:   

 

                        Aquele menino

                        e sua monark

                        um craque

 

                        andava soltando as mãos

                        só com a roda trazeira

                        um pé na sela

                        e os olhos em mim

                       

                        foram as primeiras lições

                        sobre os perigos do amor

                                                           (Monark, p. 11)

 No texto as coisas guardam ligações com o passado, trazendo a adolescência de volta pela recordação, numa constatação de que o passado de uma pessoa se conserva na memória e pela recordação presentificamos o nosso passado.

Outros poemas fazem lembrar que somente nos reconhecemos no mundo se tivermos uma experiência anterior como, nestes versos do texto “Haicai de armário”(p.23)

sem mais esperança

 o sapato do passado

guarda a última dança

                            

Rigorosamente o poema segue a estrutura do modelo japonês de haicai, isto é com apenas dezessete sílabas, obedecendo aos seguintes parâmetros: pentassílabos o primeiro e o terceiro verso,  constituídos ambos de cinco sílabas poéticas, e o segundo, heptassílabo, constituído de sete sílabas, Esses versos demarcados pela concisão, que fazem renascer uma experiência, não consistem em mera lembrança de um acontecimento isolado, mas  implicam a ressignificação do passado no presente. Para Henri Bergson, a memória é um fenômeno que consiste na reelaboração do passado no presente, numa nova percepção. A memória é um fenômeno que responde pela reelaboração do passado no presente, “ela prolonga o passado no presente”. Essa é uma das peculiaridades que se constatam nos poemas de Pedra de Cantaria, sobretudo naqueles de extensão curta que, a exemplo de haicais japoneses, buscam captar um instante privilegiado, marcado pela síntese e pela economia de meios, como neste poema que deve tocar a sensibilidade de muitos que, como eu, experimentaram no passado esse momento sob o telhado de casas sem forro de concreto, nas chuvosas madrugadas de janeiro:  

“Na longa noite

a lata na bica

soluça resignada

as coisas  se inquietam

e fazem perguntas

mas meu coração

prefere ouvir a chuva”

(Lata na bica, p.24) ...     

 

Em Pedra de Cantaria, o ponto alto do tom memorialístico de Graça Vilhena reflete-se no poema Faustino (p.33), dedicado ao poeta Mário Faustino, num claro  exemplo de intertextualidade:

dentro de tua hora

em um cavalo alado

viajo sobre os lagos

de cisnes traduzidos

 

disse-me o oráculo

que vives além do tempo

entre a aurora e o meio-dia

no movimento das palavras ao sol

 

e se me põe na colheita

teu olhar semeador

sinto a presença humana infinita

da poeira estelar que te ilumina

 

            O conceito de intertextualidade, inicialmente formulado por Bakhtin, toma como referência o romance dialógico de Dostoiévsky, em que as diversas vozes da sociedade, presentes no texto, entrecruzam-se, relativizando o poder de uma única voz condutora. Essa noção foi posteriormente desenvolvida por Júlia Kristeva, para quem a intertextualidade é um mosaico de citações e todo texto é uma retomada de outros textos já existentes. No texto de Graça Vilhena, as vozes dos poetas se cruzam entre poemas, para se construir um poema apenas. Ecoam nos versos de Graça Vilhena a voz de Mário Faustino através dos textos PrefácioRomanceSinto que o mês presente me assassina, O homem e sua hora... 

Diz-se, portanto, que o texto pode apresentar informações novas e informações que já fazem parte do prévio conhecimento do leitor. O poema Faustino se faz espaço dialógico em que o eu lírico deixa de ser o centro da interlocução, que passa a estar não mais no eu nem no tu, mas no espaço criado entre ambos no poema.

Em Pedra de Cantaria, o trabalho de resgate da memória empreendido pela autora aproxima o leitor do texto que com ele se identifica. A esse propósito, o crítico francês Charles Du Bos, citado por Raul Castagnino, declara que cada vez que um homem diante de uma obra literária – seja qual for a época em que ela foi escrita, consegue emocionar-se e reviver a comoção do autor no instante da criação; opera-se o efeito do sinfronismo, capaz de aproximar dois seres, por sobre o tempo e o espaço. Por esse motivo, Charles Du Bos conclui afirmando: “A literatura é veículo sinfrônico que apaga as distâncias e as idades ao conjuro da emoção; assim entendida a criação literária, quando alcança a plenitude no estético e legitimidade no humano, converte-se num lugar de encontro atemporal de duas almas sensíveis.”(CASTANGNINO, 1969, p. 46). Eu concluo esta apresentação parafraseando Roland Barthes no consagrado Prazer do Texto: “O texto que a senhora escreveu, professora Graça, dá-me prova de que ele me deseja. Essa prova existe: á a escritura. A escritura é isto: a ciência das fruições da linguagem. [...] Desta ciência só há um tratado: a própria escritura.”  

(*)Carlos Evandro Martins Eulálio é mestre em Educação e professor de Latim, Literatura e Prática de textos. Coordenador de Literatura no Instituto Dom Barreto e professor da Faculdade Camilo Filho, em Teresina-PI. Autor de dezenas de ensaios sobre autores piauienses  e de livros didáticos. 

 

Referências

 

ALEXANDRE, Sueli de Fátima; GUIMARÃES, Maria Severino Batista. Lírica brasileira contemporânea: uma leitura de Adélia Prado.www.slmb.ueg.br/iconeletras/artigos/volume4/...letras/lirica_brasileira.pdf. Acessado em 5-9-2013..

 

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro : Editora Forense Universitária, 1971. 

 

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo : Editora Perspectiva, 1977, p.11 (adaptado)

 

BRITTO, Paulo Henriques. Poesia e memória. In SANTOS, Ricardo Alves. Para além da Memória Individual: uma leitura do sujeito lírico nas prosas poéticas de José Paulo Paeswww.revistas.ufg.br/index.php/emblemas/article/ acessado em 5-9-13

 

CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. 6.ed. São Paulo : Ed. Nacional, 1980, p. 73

 

CASTAGNINO, Raul H. Que é literatura. São Paulo : Editora Mestre Jou, 1969, p. 46.

 

DANTAS, José Maria de Sousa. Análise literária de 16 poemas Rio de Janeiro : Presença Edições, 1982, p. 9

 

FAUSTINO, Mário. Poesia de Mário Faustino. Rio de Janeiro : Editora Civilização Brasileira. 1966

 

GUIMARÃES, Joaquim Francisco Soares; REZENDE, Cácia Valéria; BRITO, Ana Maria Plech de. O conceito de memória na obra “Matéria e Memória de Henri Bergson. VI Colóquio Internacional “Educação e Contemporaneidade”.www.educonufs.com.br/cdvicoloquio/eixo_04/PDF/37.pdf‎. Acessado em 5-9-13.

 

PAZ, Octávio. A outra voz. Trad. Wladir  Dupont. São Paulo : Siciliano, 1993.

 

VILHENA, Graça. Pedra de Cantaria. Teresina : PI, Livraria Nova Aliança Editora, 2013,

 

(*)Carlos Evandro Martins Eulálio é mestre em Educação e professor de Latim, Literatura e Prática de textos. Coordenador de Literatura no Instituto Dom Barreto e professor da Faculdade Camilo Filho.

Ensaio apresentado no Instituto Dom Barreto, por ocasião do lançamento de Pedra de Cantaria, de Graça Vilhena, 05.09.2013