[Rafael Henrique de Matos]

 

Introdução

Segundo Alfredo Bosi o roteiro do poeta Ferreira Gullar pode ser visto de dois ângulos. Um primeiro em que o eu lírico se situa entre os objetos de cultura, e um segundo voltado as rupturas, no qual o poeta se insere nas crises e lutas culturais e políticas do país(Bosi, pg.7 à 9).

Realmente, parece que são duas as faces principais de Gullar porém, para mim, as vejo de modo mais simplificado. Há um lado político predominante em sua obra e um outro, dos temas não políticos, que se contrapõe. Seria assim a “politicidade” de seus poemas um ponto de comparação para análise de sua obra. Digo isso pois, sempre que procuramos por trabalhos de Gullar, ou que se refiram a ele, nos deparamos com palavras recorrentes como “militância”, “política”, “PCB”(Partido Comunista Brasileiro), entre outras.

 Assim passei a ver Gullar como escritor que, desde sua saída do Maranhão e ida ao Rio de Janeiro, se tornou cada vez mais participante da vida política e cultual do país, se politizando mais e mais, até culminar com a filiação ao PCB em 1964. Autor que segundo Eleonora Ziller “alcançou sua maturidade poética no livro Dentro da Noite Veloz” (Ziller, pg.105). Nas palavras do próprio autor: “Os poemas do livro Dentro da Noite Veloz (1975) refletem o esforço para construir uma linguagem poética em que o elemento político participa da alquimia verbal. Mas é no Poema Sujo (1976) que essa junção do vulgar, do político e do poético, a meu juízo, atinge sua expressão mais plena” (Portal Literal, corpo a corpo com a linguagem).

Porém, entre 1980 e 1987, com a elaboração do livro Barulhos, “não predomina mais o tom político... aos poucos o poeta começa a afastar a política de sua poesia” (Ziller, pg. 176), visto que também nessa época começa o processo de redemocratização do país após a Ditadura, e o campo para a elaboração de poemas políticos perde o foco, por parte de Gullar. Ainda segundo Ziller o “tema político circunstancial desaparecerá em Muitas Vozes”. Podemos então ver Barulhos como o livro que marca uma transição em seu fazer poético.

Podemos perceber em Barulhos um poeta que em processo de mudança volta-se a poesia, metalinguisticamente, para achar-se e buscar o que se tornaria sua poesia. “Desprendido do compromisso político o que se tornaria sua poesia?” (Ziller, pg.176).

Pretendo responder a essa questão, demonstrando que na busca por uma resposta Gullar se voltou à própria poesia.

O poema por si mesmo

Através dos poemas selecionados, na antologia, verifiquei que, nas próprias poesias, Gullar propõe como pretende que sua poesia seja. Nessa sua fase de empenhar-se em achar uma nova concepção de seu trabalho o poeta volta ao começo, o mundo da criação, na buscas por respostas. E nesse âmbito vemos os pilares do que o escritor tem como o que é poesia:

De terra te quero;

                         poema,

e no entanto iluminado.

.........................

.........................

o corpo perpassado de eclipses,

poroso

poema

                                                               (Poema Poroso, Toda Poesia)

o que eu vejo

me atravessa

.....................                   

o que eu vejo passa

através de mim

.........................

e sou então apenas

essa rude pedra iluminada

ou quase

se não fora

                  saber que a vejo.

                                                                (Olhar, Toda Poesia)

Gullar quer o poema que absorva o que ele vê, sente: “o corpo perpassado de eclipses/poroso/poema”. Poesia que é fusão, como diz Emil Staiger (Staiger, pg.59). Porém não uma fusão estática: “o que eu vejo me atravessa/ passa através de mim”. Mas um processo de constante perpassar, atravessar, que por sua constância, se torna fusão. Mas com o que ele se funde?

O poema não voa de asa delta

não mora na Barra

...............................

Pra falar a verdade, o poema não voa:

anda a pé

e acaba de ser expulso da fazenda Itupu

                                          pela polícia.

Come mal dorme mal cheira a suor,

parece demais com o povo:

O poema é confuso

mas tem o rosto da história brasileira:

               tisnado de sol

               cavado de aflições

                                                                       ( O Lampejo, Toda Poesia)

De terra te quero;

                         poema,

...................................

           de poeira –

           onde berram

suicidas e perfumes;

                                 assim te quero

sem rosto

e no entanto familiar

..................................

                                 De terra,

onde para sempre se apagará

                 a forma desta mão

                 por ora ardente.

                                                                  ( Poema Poroso, Toda poesia)

O poeta tem como principal objeto de sua poesia o povo. E este é o que se mantém em sua poesia sempre, independente da fase por qual passa o escritor. “De terra te quero/ onde berram suicidas e perfumes/ sem rosto... familiar/ onde se apagará.... a forma dessa mão por ora ardente”, vemos aqui a relação de sua temática com o outro. Busca em sua obra dar voz a quem não tem, aos “sem rosto familiares”, para que sua mão ardente(mão que quer dar voz à alguém) ganhe repouso após o contato com o papel.

É poema que “não mora na Barra” mas “Come mal dorme mal cheira a suor”, que é “De terra”, pé no chão. Quando escreve Gullar “se atribui como missão traduzir o outro em si mesmo, para que seu poema não seja hedonista ou idealista, mas concreto” (Fonseca, p.116-117), quer que seja de terra por ser refletir em uma realidade, e não fantasia.

Apesar de, todo esse apelo popular, dar a parecer que o poeta ainda faz poesia engajada politicamente, não o é. Pois aquele que reflete sobre si mesmo, e está em transição, não deixará de ter em seus escritos a recordação do que já foi e, em parte, ainda o é. Se em trabalhos anteriores o poeta falava do povo com um tom mais denunciativo, agora o faz apenas porque o povo sempre fez parte dele, e não pode deixar de retratá-lo, mesmo que o faça no atual momento mais como tom de observação e identificação com ele:

Meu povo é meu abismo.

nele me perco:

a sua tanta dor me deixa

surdo e cego.

Meu povo é meu castigo

meu flagelo:

seu desamparo,

meu erro.

Meu povo é meu destino

meu futuro:

se ele não vira em mim

veneno ou canto –

                              apenas morro.

                                                                   (Meu povo, meu abismo. Toda poesia)

Meu povo e meu poema crescem juntos

como cresce no fruto

a árvore nova

No povo meu poema vai nascendo

como no canavial

nasce verde o açúcar

No povo meu poema está maduro

como o sol

na garganta do futuro

Meu povo em meu poema

se reflete

como espiga se funde em terra fértil

ao povo seu poema aqui devolvo

menos como quem canta

do que planta

                                                               (Meu povo, meu poema. Toda Poesia)

A partir dos dois poemas anteriores podemos perceber como se deu a transformação da retratação do povo em sua poesia. “A solução final nos dois poemas é a mesma: o poeta não existe sem o povo, mas a nova construção já não comporta a completa integração poeta-povo-natureza do primeiro momento” (Ziller, pg.179).

Em “Meu povo, meu poema”, lançado no Brasil em plena ditadura militar, Gullar se encontra em harmonia com o povo, pois deste obtém a terra fértil para que seu poema cresça, e se torne voz “na garganta do futuro”. É aqui o poeta alguém engajado em lutas sociais e políticas a favor de seu povo, e por isso seu poema cresce.

Já em “Meu povo, meu abismo” a relação do poeta com o povo é desarmônica. O povo continua sendo parte integrante sua, porém “seu desamparo”, o afastamento da vida política por Gullar, acata em um “erro”. Assim ele ao se “despolitizar” comete um erro, flagelo.  

Nas próprias palavras do poeta verificamos a transformação: “Alguém que conseguiu escapar do anonimato, que vem do sofrimento menor, da tragédia cotidiana e obscura que se desenrola sob os tetos de minha pátria, abafada em soluços, a tragédia da vida-nada, da vida-ninguém. Se algum sentido tem o que escrevo, é dar voz a esse mundo sem voz...... E a história humana não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogo, nos prostíbulos, nos colégios, nas ruínas, nos namoros de esquina. Disso quis eu fazer a minha poesia, dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não têm voz” (Gullar-por ele mesmo, corpo a corpo com a linguagem). É escritor que já não tão mais envolvido em política adere a temáticas sobre o povo de um ângulo mais simples e cotidiano.

Todo poema é feito de ar

apenas:

...............................

..............................

O poema

é sem matéria palpável

           tudo

           o que há nele

           é barulho

                       quando rumoreja

                       ao sopro da leitura.

                                                           ( Barulho, Toda poesia)

Não interessa

a ninguém

(talvez)

isso

de que já falei

......................................

                    Não interessa

                    talvez

porque se a poesia

é universal

o poema é

uma questão pessoal

                     (de mim comigo

                      de voz comigo

   ..................................

essa palavra avesso esse

verso

..............................................

                           o poema

que em si mesmo se solve

                            (em seu mel).

                                                           ( Questão Pessoal, Toda Poesia)

Notamos nos dois poemas anteriores a transformação que acontece, aos poucos, de um escritor “concreto no outro” (poema que se realiza ao se fundir no outro), para um tom mais “introspectivo metalingüístico” (poema que trata das tensões internas do autor, não mais no outro, e poesia que “em si mesmo se solve em seu mel”).

É interessante notar como o poeta que anteriormente tinha a terra de seu poema no outro(“de terra te quero poema”), agora se mostrar como alguém que olha para si mesmo(“o poema é/uma questão pessoal/de mim comigo/de voz comigo), ocorrendo o mesmo com sua poesia(“em si mesmo se solve em seu mel”).

 

A construção do poema          

 

“... Está aí a origem de minha poética, se tenho o direito de me expressar assim. Surge de uma atitude que, de algum modo, põe em questão a própria literatura e, em termos imediatos, renega a linguagem parnasiana, rimada e metrificada”

                                                            (Portal literal, corpo a corpo com a linguagem)

“Ela (a forma) expressa alguma coisa que só se manifesta através dela... Se, por algum modo, conseguimos despojar essas coisas de sua significação ordinária, elas ganham a nossos olhos uma estranheza que não é senão a expressividade de suas respectivas formas.”

                                                      (Portal literal, a expressividade da forma)

Logo de início, quando nos prestamos a ler um poema de Gullar, o que salta à vista é a diferente estrutura do poema. Raramente, principalmente em trabalhos mais recentes, encontramos algo que apresente um corpo uniforme. Em sua obra isso se dá pela própria natureza do que admite o autor ser a composição poética: “Todos os elementos da língua são e não são poéticos, dependendo da função específica que exerçam dentro de determinado contexto verbal. Noutras palavras: é o processo de elaboração da linguagem pelo poeta que transfigura os elementos verbais e faz com que neles aflore a intensidade da expressão poética. Pretender realizar um poema constituído apenas de elementos poéticos implica eliminar o processo dialético que promove a transfiguração das palavras... Por isso entendo que o poema é o lugar onde a transformação se dá” (Portal literal, corpo a corpo com a linguagem).

Assim a diferente estruturação da poesia de Gullar é para levar o leitor a não tomar sua leitura como algo passivo. A estranheza que é causada pela forma adversa do convencional nos convida a transfigurar significados e sentidos que possuímos, diante da vida, através das palavras.

Nas palavras do poeta: “com o único objetivo de denunciar as mazelas sociais, na presunção de assim contribuir para a transformação revolucionária, da sociedade brasileira. Era a renúncia à arte literária, o abandono de um sofisticado domínio do universo poético, a negação do poeta em favor do homem comum, identificado com o povo inculto e pobre de seu país... Poema Sujo é assim uma outra explosão,...: em vez de tentar implodir a linguagem usual, procurar incorporá-la à linguagem poética, com toda a sua suja carga de vida.” (Portal literal, corpo a corpo com a linguagem). Percebemos então que ainda mais do que causar estranheza e transfigurar as palavras a estrutura do poema se faz na busca de tentar refletir no papel o mundo. Com movimento, vivo, sujo e livre de estéticas pré-estabelecidas.

  Há quem pretenda

      que seu poema seja

      mármore

      ou cristal – o meu

o queria pêssego

              pêra

              banana apodrecendo num prato

e se possível

numa varanda

onde pessoas trabalhem e falem

e donde se ouça

                         o barulho da rua.

                                                                       (Desastre, Toda Poesia)

Vemos aqui o movimento do poema, o vai e vem dos versos. Também presenciamos a vida, ao poeta querer seu poema “banana apodrecendo em um prato". Tudo isso em conexão com o mundo: “numa varanda.... donde se ouça o barulho da rua”

Mas sua poesia não só “o irregular” da forma, como aparenta. Há no corpo poético recursos que asseguram uma unidade.

 

                as xí-

                caras as

                pêras podres as

                asas do pombo

                                       ( o fragor

                das asas) as casas

                os quintais as aves

                                                                       (Nasce o poema, Toda Poesia)

No exemplo acima notamos o movimento e a vida do poema. Percebemos o deslocamento incomum dos versos, o que nos causa a “estranheza”. Mas há também aliterações que no âmbito sonoro nos ditam um caminho para a leitura extra-visual: as repetições dos fonemas /s/ e /p/.

Outro exemplo da uniformidade da poesia são as repetições de palavras ou trechos no decorrer do texto:

Meu povo é meu abismo.

.................................

Meu povo é meu castigo

.......................

Meu povo é meu destino

...............................

                                                                     (Meu povo, meu abismo. Toda Poesia)

 

nem onde

                                           nem quando

                                           nem qual é a receita

 

                                                                       (Nasce o poema, Toda a Poaesia)

Come mal dorme mal cheira a suor,

parece demais com o povo:

                                           é assaltante?

                                           é posseiro?

                                           é vagabundo?            

frequentemente o detêm para averiguações

        às vezes o espancam

        às vezes o matam

        às vezes o resgatam

                                                                     (O lampejo, Toda Poesia)

 

Levando em conta que o trabalho de Gullar quanto à estruturação do poema não é mero devaneio, e sim um trabalho pensado, não pensemos nós que ele levou em conta só as palavras. Também levou em conta os espaços.

Grande parte da reflexão de poeta sobre a forma acaba passando sobre reflexões sobre a pintura. É de se pensar que suas experiências nos textos poéticos derivam de tais reflexões. Esse pensar sobre a pintura pode ser visto nos textos do “Portal literal”, os endereços apresentados na bibliografia.

Sendo a pintura não só o debate do preencher, mas o de encarar o vazio, o poeta se atira nessa proposta. Gullar participou e entrou em contato com o “Concretismo” (arte que faz uso apenas de formas geométricas – fonte enciclopédia digital master) e o “Neoconcretismo” (nascido de uma necessidade de exprimir a complexa realidade do homem moderno dentro da linguagem estrutural da nova plástica – fonte Cd ROM 500 anos da pintura brasileira). Portanto reflexos tiveram em sua poesia: o uso incomum do espaço com diferentes propósitos.

Por exemplo, em “Poema poroso”, em que os espaços representariam tal porosidade. Assim como em “Olhar” o branco do papel e os espaçamentos entre os versos e estrofes possam denunciar os caminhos por onde a poesia o atravessa.

Conclusão

 Ao ler o livro Barulhos, e levar em conta certos poemas escolhidos para análise e entrando em contato com parte da obra de Gullar de outras épocas, formei um ponto de vista: é este livro marca de uma transição no fazer poético do autor.

Já não tão mais envolvido na vida política do país ele volta-se as palavras e a um mundo abstrato nos poemas. A “concretude” da obra se dissolve no mel das palavras. E neste mundo das palavras, não concorrem apenas elas, mas também os espaços. Este encontro gera um mundo da estrutura estranha, que tem como objetivo causar estranheza ao leitor e representar a vida real.

Sendo a estranheza ferramenta para que quem lê não se entregue passivamente, mas busque nesse choque resgatar os significados, divergentes dos conceituais, que o poeta quis conferir à sua obra. Querendo Gullar dar vida ao poema pelo movimento dos versos e estrofes, pelas imagens das frutas podres.

Se percebi influências em sua obra estas são: no campo do conteúdo, o povo. No campo da forma a pintura, o concretismo e o neoconcretismo.

 

Bibliografia

 

·         Ziller, Eleonora – Poesia e Política: a trajetória de Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Revan, 2006

·         Fonseca, Orlando – Na vertigem da alegoria: militância política de Ferreira Gullar. Santa Maria: UFSM, Curso de Mestrado em Letras, 1997. 248p.

·         Toda Poesia(1950-1987) / Ferreira Gullar; prefácio de Franklin de Oliveira – 7.ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.

·         Bosi, Alfredo – Melhores poemas de Ferreira Gullar/ seleção e apresentação – 7.ed. ver. e ampliada – São Paulo: Global, 2004.(Melhores Poemas)

·         Site Portal Literal: http://potalliteral.terra.com.br/ferreira gullar/porelemesmo/a expressividade da forma.shtml?porelemesmo

·         Site Portal Literal: http://potalliteral.terra.com.br/ferreira gullar/porelemesmo/corpo a corpo com a linguagem.shtml?porelemesmo  

·         Staiger, Emil – Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1972.

 

Rafael Henrique de Matos

Rafael, 29 anos, formado em letras pela USP. Já foi professor, pesquisador e doador de sangue. Escreve quase todo dia, todo dia tentando escrever melhor, lendo mais que rabiscando.