ESTRANHO HOMEM
Por Cunha e Silva Filho Em: 29/07/2022, às 22H14
Estranho Homem
Cunha e Silva Filho
Aquele homem grande, meio calvo, corpulento e de cara amarrada bateu três vezes na porta principal com os dedos em punho. Do lado de dentro, eu achei esquisito a chegada ali daquela pessoa. O homem foi logo dizendo que tudo estava errado. Eu e minha família, isto é, minha esposa e meu filho não entendemos o porquê do transtorno daquele homenzarrão de cara feia que, sem motivos, vinha nos importunar do nada. “Quem é o senhor? O que quer de nós? Não fizemos nada errado.A casa é minha, pago meus impostos em dia e sou um funcionário público em final de carreira”.
“Tudo quase aqui em sua casa está irregular, até a arrumação da casa, a mesa não deve estar neste lugar aqui, o sofá é grande demais pra casa, a geladeira, o fogão, o tanque, enfim, tudo na casa está irregular.”
“Mas, por que me diz  tudo  isso,  senhor?’ “Não quero  saber de sua  resposta. O senhor, que se diz  dono da casa deve me acompanhar"
    Era noite.  Mas, o que  disse era da boca  pra fora,  pois, como se verá, no final   da conversa,  ia exigir que fosse na manhã seguinte prestar  declarações ao chefe  sobre  todas  as "ilicitudes"  que  conseguiu anotar  numa caderneta.   
  "Vejo,  inclusive,   que  sua cama   é grande demais,  não  tem  o tamanho  adequado  para  um casal  tão  pequeno e com  pouco  peso  se somados  os dois. O quintal  está, da  mesma  forma,   todo  fora da lei,  assim como  os bichos que cria. Eu vou  precisar de ter  documento  seu  comprovando  que o senhor  foi quem   comprou   os bichos: galinhas,   patos,   uma tartaruga,  um cachorro vira-lata e um gato  branco.E até os passarinhos nesta gaiola  não são permitidos   por lei.Vou ter que levar  bichos  e aves”.
Esqueci de informar que o brutamontes estava acompanhado de um homem pequeno, de olhos vesgos e trazia, debaixo do braço, uma pasta marrom, dessa pastas que comumente vemos na cidade gente carregando cheia de papéis com ares de burocrata certinho e bem organizadinho.
“Se o senhor não arrumar sua casa conforme as recomendações legais, será daqui expulso e até mesmo, caso reclame de alguma coisa, sairá preso, perderá o emprego 'para o bem do serviço público.’ E nem pense que conseguirá algum advogado pra defendê-lo. De nada adiantará, se for o caso de prisão, será prisão mesmo” Habeas corpus para nós, diz o armário, é conversa mole de excesso de proteção a criminoso”.
“Mas, nada fiz de errado, levo uma vida correta, não tenho vícios, não tenho, ao que pareça, inimigos, e só tenho um hobby, o de colecionar velhos livros de matemática, matéria que sempre estudei, dela fui aluno exemplar. Como são, em geral, livros raros ou de décadas atrás, encomendo-os pelas livrarias virtuais. Eles chegam sem problemas. Veja, ali naquela estante, quanto deles coleciono. Se disponho de mais tempo, leio-os e resolvo os problemas propostos por seus autores. Até os mais cabeludos.Alguns deles têm a chave dos exercícios, destinada aos professores, então designada “Parte do Mestre” (se não me engano, introduzida pelos Maristas da Coleção primorosa, a F.T.D.) para que confira se acertou resolver os problemas ou não.”
“O senhor está me fazendo perder o tempo com conversa fiada. O meu assunto aqui nesta casa é vir cumprir o que meu chefe me determinou e lembre-se de que eles são tão sensíveis quanto os robôs e os programas de computador. São frios e calculistas e, ao lidarem com o ser humano, pouco ou nenhum valor lhe dão. Portanto, vá cuidando do que tem a declarar ao chefe superior. Aqui está o endereço a que deve comparecer, leve o máximo possível de documentos e notas fiscais de compras dos objetos que a sua casa possui. O grandalhão entregou-me um papel timbrado e me pediu que o assinasse. O comparecimento ao chefe seria no dia seguinte, às 9 00:hs.
     O brutamontes, acompanhado do homúnculo, saíra  da casa sem  despedir-se. Ao contrário,  bateram  com a porta e sumiram  para um  lugar   desconhecido. Era noite.    Em casa, agora sozinhos,  não sabíamos   o que  dizer, tomados de medo  e desespero.  Descobri, de repente,  que  apenas mal  acordara  de um pesadelo e, agora, nem me recordo bem  se  os fatos se deram  conforme  o relato  precedente. Me acuda, leitor, que o mundo é louco mesmo  e sem sentido.
   Não  viu o que fizeram   com  aquele famoso  personagem de Kafka, preso  sem saber  por quê? E mesmo  a figura real  de  Graciliano Ramos,  o que de errado  fez  pra merecer  uma prisão no Estado Novo? Experiência  de preso injustiçado   que  lhe rendeu literariamente  uma grande  obra,  Memórias do  Cárcere. O pai  deste narrador também  foi preso em 1935, no mesmo  período  discricionário,     injustamente  somente  porque  tinha  em casa  uns livros marxistas que, de resto,  tinham  sido deixado na  casa dele  por um  seguidor  do comunismo,   o qual por acaso  estivera de passagem  por Amarante,  cidade  piauiense.Um dedo-duro  denunciara  meu  pai  que,  por isso,   amargara  um período de cadeia em Teresina. A experiência de prisão de meu pai o inspirou a escrever  um  dos  melhores capítulos  do  seu livro, Copa e cozinha.

                                                        