Tela de Avelar Amorim
Tela de Avelar Amorim

[Avelar Amorim]

Num tempo que até o céu tinha outro azul, eu vi e senti o dia do bolo na casa da minha avó. Era sempre na segunda-feira da Semana Santa. Era tradição e hoje em dia nem sei se ainda é; o hábito de fazer bolos em casa e trocar os pedaços entre amigos e familiares, que também tinham bolos nesse período em suas casas. Todo mundo tinha nem que fosse só um pedaço de bolo numa bacia em cima da mesa na cozinha. Até hoje, toda vez que mordo um pedaço de bolo de puba, volto no tempo pelo gosto e pelo cheiro. E voltar no tempo desse tempo, é sentir também o cheiro do carvão em brasa, sendo esfriado com a água da mangueira depois que o rodo puxava tudo do forno quente pronto para receber os montes de bolo que várias pessoas traziam para assar naquele mesmo momento. Algumas preparavam tudo lá na cozinha cheia de zoada e folia com tantas tagarelas, fofocas, gargalhadas e muito baticum da batedeira a mão espumando as claras dos ovos na tigela. Tinham cadernos Tilibra de receitas, todos escritos à mão com uma caligrafia impecável com o título dos bolos feito com letras de forma. Era um vai vem danado de formas de alumínio, quadradas e redondas, mão melada de manteiga, água quente derramando em cima de goma, a lenha queimando no forno, minha tia ralando coco, o ventilador entupido de coisa com a hélice emperrada, cheiro de fumaça, menino lambendo colher e eu ali com o dedo cortado ao lamber a tampa da lata de leite Moça; botei açúcar em cima do corte para estancar o sangue, engoli o choro e fui lamber outra lata com a outra mão; esse momento é meu e ninguém toma. Na sala, a televisão ligada sempre com gente assistindo Sessão da Tarde; e no quintal, alguém abre a boca do forno e puxa três formas tinindo de quente com milhões de biscoitos “efes e erres” estalando de gostoso. Tia Xiquita empurra mais três formas de bolo de goma que logo estarão prontos para retirar. Era essa festa até o começo da noite quando se via a mesa repleta de bolos, todos com seus respectivos donos aguardando resgate. Aos poucos todos iam saindo para suas casas com seus bolos e no quintal só se via o piscar das brasas que restaram ainda reluzindo na boca do forno. Encerro essa memória comendo um pedaço de bolo de goma duro e sem gosto de anteontem comprado na Padaria aqui perto de casa, o mesmo que todos compram hoje, amanhã, na Semana Santa e para todo sempre em qualquer cidade longe dessa riqueza chamada saudade.