DA HUMILDADE OU ELOGIO DE H. DOBAL

Por Wanderson Lima

Num filme de Akira Kurosawa que há muito assisti, uma cena ainda persiste em minha memória. São duas senhoras idosas; uma chega à casa da outra, senta-se e fica silente. As duas, frente a frente, não conversam. A visitante levanta-se, despede-se. Um neto da senhora anfitriã lhe indaga sobre a estranheza da visita, o porquê de não ter havido diálogo. Ela responde que houve sim, pois o diálogo pode prescindir da fala.


Meu diálogo com H. Dobal também foi marcado por certa inefabilidade, nele também não houve troca de palavras. Tive inúmeros pretextos para conversar com ele ¬– ou, na impossibilidade de ele não falar, mercê do Parkinson, de ficar frente a ele, como as velhinhas do filme de Kurosawa (penso mesmo que, como ocorreu a elas, nossa conversa poderia prescindir do diálogo).


Suspeito da frase, dita ou parafraseada nestas ocasiões, que diz: “Morre o homem, fica a obra”. Ela revela uma presunção profética e certo desprezo pelo homem de carne e osso. Como, infelizmente, não posso falar do homem – e como isso hoje me dói! – vou falar de uma qualidade do poeta que (quer ele a tivesse ou não quando distante do trabalho poético) enobrece sua condição de homem: a humildade. Ela apareceu na poesia dobalina como resultante de um compromisso ético que tinha uma dupla frente: o apagamento do eu e de suas vicissitudes e a manutenção de um padrão de comunicabilidade nos poemas, numa época em que a poesia seguia sua marcha rumo a uma elitização resultante do eruditismo dos poetas de 45 e do experimentalismo dos concretistas.


H. Dobal operou via poesia a façanha de esquecer-se, e vislumbramos, paradoxalmente, a generosidade do homem no momento em que ele se afasta deliberadamente de nós. Ele se revela em seus versos na medida mesmo em que se impessoaliza (e às vezes, se despersonaliza); ele sabe – como Eliot e Pessoa – que poesia é uma fuga da personalidade. Dobal se esquivava para deixar o poema passar; a impressão de realismo lírico que emana de seus versos advém, em grande parte, do apagamento do eu pessoal; este recurso cria a impressão de que o poeta está elaborando um conhecimento objetivo da realidade.


Mais que um geômetra do verso, Dobal era um humilde que lutava para apagar suas pegadas do poema; sua sensibilidade não era daquelas que buscava a objetividade pela via da inteligência e do cálculo racional, como em João Cabral e Paul Valéry; Dobal se parecia mais com um Manoel Bandeira ou com os hacaístas japoneses, que buscam na eliminação do “shi-i” (o eu pessoal) um meio de captar a poesia da natureza, e não de fazer poesia sobre/para a natureza.


A poesia de H. Dobal, portanto, pressupõe uma ascese: a liberação gradual de uma subjetividade egoística, o lento aprendizado de ver a poesia em vez de inventá-la. Ele não é seco e conciso, como dizem; secura e concisão pressupõem uma operação violenta e artificial sobre a linguagem, e a única coisa que Dobal não fazia era atropelar a sintaxe desnecessariamente para parecer vanguardista, como os poetas marginais, seus admiradores, fazem para parecerem revolucionários, quando na verdade estão substituindo a retórica por uma anti-retórica que, inversão ingênua de sinais, não deixa de ser retórica. Dobal não caiu nesta armadilha; ele esperava, calado, a poesia; escutava e via (principalmente via) a poesia nascer e sazonar. Seu gesto (seu estilo) era humilde mas direto; gentileza não é pusilanimidade, e quando precisava ser duro ele assim o fazia: a expressão de Dobal representando os trabalhos e os dias do seu povo não é aduladora, nem exótica, nem politicamente correta no sentido de querer contrabalancear as “dívidas históricas”.  O poema “El Matador”, sobre a dizimação dos povos indígenas no Piauí, pode desmentir essa afirmação; mas este é uma exceção na obra do autor. Tornou-se louvado por sua crítica furibunda – justa politicamente e patética poeticamente, mas a inovação estilística desse poema, absorvendo a sugestão crítica e formal da montagem cinematográfica russa, parece que, por algum tempo, só foi de fato compreendida por Paulo Machado, que a retomou em “Post Card”.


Como observou Ranieri Ribas, H. Dobal sofria de uma “estrangeiridade” congênita: ele escrevia de fora, mas com ternura; ele ria com seu povo, mas não do seu povo. Aliás, Dobal não tinha povo: viajante por longo tempo, estrangeiro em toda parte, herdeiro do conservadorismo típico do melhor modernismo anglo-americano (Pound, Eliot e Yates) na sua visão descontente com a modernidade, sua lírica não se despregava do chão em que pisava, do ar que respirava: lírica cultural, terna e desencantada com tudo. A criação poética, para ele, era expressão da coletividade, não do ensimesmamento; era uma vindicação da comunidade contra a solidão das multidões, típica da urbe moderna.


Ainda pretendo entabular diálogos com Dobal e, como na conversa das idosas em Kurosawa, a ausência de viva voz não será sinônimo de falta de comunicação. A poesia mediará nosso diálogo e, ao fim, contra minha vontade, vence o bordão que eu quis ingenuamente negar: fica a obra. Mas, me pergunto, não foi este o gesto inteiro da vida de Dobal: apagar o homem para fazer emergir a obra, para deixar falar a poesia? Não foi esse o “microamor” a que Dobal foi mais fiel ou que foi mais fiel a ele?

A vida é uma cantiga triste
mais triste e à-toa que a das andorinhas
- Las oscuras golondrinas
tão mal vivida
tão mal ferida
tão mal cumprida.

A vida é uma cantiga alegre:
o primeiro sorriso de cada filho
e todos os microamores
que inutilizam
a vitória da morte.

 

* WANDERSON LIMA é professor e escritor.