WASHINGTON RAMOS                           

   Conselheiro Aires versus Joaquim Nabuco, a oposição entre essas duas figuras me veio à mente assim que terminei de ler “Memorial de Aires”, último romance de Machado de Assis e seu pior livro. O primeiro personagem é fictício, embora tenha alguns caracteres de seu criador; o segundo é real e uma das mais proeminentes personalidades a favor da libertação dos escravos.

   A narrativa desse romance machadiano é estruturada em forma de diário, que começa em 9 de janeiro de 1888, a quatro meses da Lei Áurea, e tem sua última data em 30 de agosto de 1889, a dois meses e meio da Proclamação da República. Como se vê, “Memorial de Aires” situa-se num período de grande efervescência política no Brasil. Mas retrata quase nada dessa época agitada. O Conselheiro Aires, que é o autor do diário, parece mais um colunista social comentando amenidades sentimentaloides do que um homem próximo do poder central ( foi diplomata brasileiro na Áustria ). Em suas anotações do dia a dia, refere-se aos problemas da escravidão apenas 26 vezes, a maioria delas de maneira muito superficial, apesar da proximidade do 13 de Maio, cuja movimentação é fracamente descrita. Numa dessas vezes, ele diz que já era tempo de se fazer a abolição. Em outras duas, ele demonstra ser contrário à liberdade dos escravos. Estando na rua do Ouvidor, no dia da assinatura da Lei Áurea, no meio da maior agitação, um amigo jornalista o convida para ir de carro, num cortejo, rodear o palácio e aplaudir a Princesa. O Conselheiro recusa a carona e diz que, se fosse, enquanto os amigos se levantassem para saudar a Regente, ele “meteria a cara entre os joelhos”. Noutra passagem, ao saber que a viúva Fidélia pensou em doar uma fazenda aos escravos, ele duvida da capacidade dos libertos em trabalhar para que a produção da fazenda continue firme.

    Há ainda uma em que, falando de navios negreiros que aportavam no Brasil, ele cita o poeta alemão Heine e esquece Castro Alves, reforçando a velha mania brasileira ter olhos mais abertos para a Europa do que para o Brasil. Entretanto o trecho mais sintomático e engraçado sobre a abolição é este em que os escravos, quando sabem que Fidélia talvez venda a propriedade, pedem a ela que não o faça, ou os traga consigo para o Rio: “Tinha graça vê-la chegar à Corte com os libertos atrás de si, e para quê, e como sustentá-los? Custou-lhe muito fazer entender aos pobres sujeitos que eles precisam trabalhar e aqui não teria onde os empregar logo.” Teria, sim. Ela poderia vender alguns e botar outros no ganho, como fez a mãe de Bentinho, no Dom Casmurro. É ao mesmo tempo humorística e incômoda a expressão “tinha graça”, tão comum entre nós quando queremos negar algo radicalmente. É claro que ela revela também um sutil mas indisfarçável preconceito. O conselheiro, com certeza, ficaria triste se visse Fidélia chegando à Corte com os escravos. É uma pena que ela não tenha feito isso.

   Por que Machado criou esse personagem tão elitista e contrário à libertação dos escravos? Será que foi para denunciar o quanto era insensível a elite da época? Pode-se dar uma resposta positiva a essa segunda pergunta, mas, em “Memorial de Aires”, não vi nada que possa confirmá-la enfaticamente.

   (Gosto muito da obra machadiana, mas sou contra seu endeusamento. Aos amigos que adoram incensá-lo, peço compreensão. Não sou o primeiro a criticá-lo negativamente. Acredito que fustigar um monstro sagrado enriquece o debate sobre nossa literatura.)

   O autor de “Quincas Borba” tinha uma boa amizade com Quintino Boicaiuva, um dos mais combativos jornalistas da época e que, conforme está narrado em “O Velho Senado”, andou cobrando posições políticas de Machado de Assis.

   Machado era muito amigo de Joaquim Nabuco, um dos mais fervorosos abolicionistas na época, e com ele trocou muitas cartas. Os dois e mais alguns outros escritores fundaram a Academia Brasileira de Letras. Mas, em seu último livro, o autor de Dom Casmurro preferiu um conselheiro elitista a um defensor da liberdade.