(Miguel Carqueija)

Neste capítulo, vemos como Lena armou a sua estratégia.


CAPÍTULO 5

LENA


        A vida num pensionato de moças, enquanto exercia um cargo de holodigitadora, era um estorvo para Lena. A posse de um pequeno apartamento, de propriedade do pai, fôra quase a única herança afora os segredos científicos. Houvera uma terceira herança: alguns milhares de partidários (*) que, se preciso fosse, poderiam sustentá-la durante meses. Lena não soubera em tempo hábil até que ponto o cerco se fechava sobre Stopenhouse, e a sua própria existência poderia então ter sido descoberta, bastando para isso um pouco de azar. Mas fizera-se a transferência de informações sem que o Partido desconfiasse. Oficialmente, Stopenhouse não tinha filhos.
        Ao deixar o pensionato Lena vira-se na posse de um reduto, onde o essencial permanecia escondido de olhos bisbilhoteiros; e um reduto inicial era o ponto de partida. Então era necessário um sistema completo de proteção, de precaução; inclusive em relação à vizinhança. Transformar o reduto num fortim, numa fortaleza, ou mudar-se para um melhor; esse o seu plano imediato. Isso e o aperfeiçoamento de seus poderes.          
        A arquitetura lemueliana era uma coisa “sui-generis” e Gloria podia orgulhar-se de ser uma cidade bastante estrambótica, com seus edifícios-quarteirões circulares e vitrificados. Lena morava num desses edifícios, no apartamento 304, que poderia abrigar um casal com filhos. O receio de ser um dia descoberta impedira-a, a princípio, de adotar um cão de guarda; e submetera o seu reduto a uma minuciosíssima inspeção, detalhista até o nível alucinatório.
        A forma cupular de tais prédios, que predominavam em alguns bairros de Gloria, trazia estranhas características àqueles apartamentos: mais numerosos em baixo, reduzindo-se a dois na cúpula, ou somente uma cobertura com teto transparente, mas escamoteável a olhares por um teto corrediço interno. No edifício de Lena eram cinco os andares e no seu próprio andar existiam quatro unidades, cada qual ocupando 90 graus da circunferência, sendo o teto mais estreito que o soalho.
        Para a rua existiam duas janelas corrediças, embutidas, com a forma retangular alongada típica de tais construções; uma no quarto e outra na sala. A porta de saída era apenas uma, na saleta de entrada, detalhe que reduzia em muito as garantias do refúgio. Assim, Lena concentrava sua atenção na manutenção de sua incógnita e na capacidade potencial de resistir a um ataque.
        Para tanto era indispensável a tecnologia secreta herdada do pai. Por exemplo, a “lanterna apagadora” que polarizava numa direção os raios solares e podia colocar um aposento às escuras num abrir e fechar de olhos.     
        A incursão que libertara Tousand dera-se ainda nessa fase inicial, mas não pudera ser adiada. Um ataque ao Triângulo, sozinha, seria no mínimo dez vezes mais arriscado que a abordagem do trem, no túnel, com aquelas armas fabulosas que puseram a guarda em polvorosa. O Triângulo, porém, era um osso mais duro de roer.
        Voltando ao fio da meada, Lena sabia que existiam cinco apartamentos em baixo e três em cima, portanto as paredes divisórias não podiam casar perfeitamente de andar para andar. Em cima de seu alojamento existiam, portanto, trechos de dois apartamentos. Porteiros não haviam; era um tipo de luxo pouco comum naqueles tempos.
        Seu próprio apartamento, bastante funcional, tinha apenas um quarto completo, e um quarto de crianças (ou quartinho como chamavam) porque se considerava que uma criança precisava de menos espaço, com direito apenas a uma janela para o poço interno, de vidro irremovível e com orifícios para o condicionamento de ar. Tendo em vista o devassamento mútuo, tais janelas de poço costumavam permanecer cerradas. O quartinho possuía ainda duas portas, uma dando para a saleta e outra para o quarto. Cozinha, copa e banheiro formavam uma ala à parte, sem janela para o exterior e ligadas por um corredor situado entre estas dependências, à direita de quem entrasse, e a sala e saleta.
        Área simplesmente não existia, nem havia porque a existência de tanque, coisa fora de uso em Gloria.
        Como fazer de um refúgio tão medíocre o quartel-general de uma super-heroína? A pretensão de Lena não era propriamente reproduzir os ridículos personagens dos velhos quadrinhos, risíveis na concepção e nas aventuras, mas desenvolver na vida real e de maneira lógica a idéia-base de uma pessoa que, por dotar de meios extraordinários, pudesse enfrentar a seu modo a máquina do crime ou, no caso, da opressão.
        Isso mesmo Rita lhe perguntara:
        — Não foi fácil acreditar que você libertou Tousand. Mas você se arriscou muito!
        — Com a ciência de meu pai, não foi tanto risco assim.
        — Você tem um temperamento muito bizarro, Lena. Acho que você não tem medo de nada, não é mesmo?
        — Creio que não. O máximo que podem fazer comigo é me matar.
        — Perdão, mas não é o máximo. Existe a tortura. Podem ser feitas coisas horríveis com uma pessoa. Coisas que eu não quero nem falar.
        — Sei que podem fazer coisas bastante injucundas. Por isso o importante é não se deixar pegar... nunca. E fazer-se matar em último caso. Ah, sim: não estou me referindo a suicídio, isso é contra a lei de Deus. Refiro-me a lutar até a morte, se isso for preciso.
        — Mas nem sempre é possível.
        — Não... em circunstâncias normais. Entretanto eu possuo armas que me tornam quase impossível de ser capturada viva. Se essas armas pudessem ser multiplicadas teríamos como organizar um exército capaz de enfrentar o califa de Lemuel.
        Rita passou os dedos na glabela, em gesto meditativo.
        — Por isso é importante falar com os Rebeldes!
        — Mas tenho a impressão de que seria prematuro entregar a eles semelhante poder. Pense bem, Rita: não é fácil reproduzir todo esse material e se fossem despertadas suspeitas tudo poderia ir por água abaixo.
        — Teríamos de ir com calma. Primeiro o Lorne, é claro. Foi uma sorte saber que ele é do grupo, senão não disporíamos de pista alguma.
        — Foi só ele, ou quase, que o meu pai soube... coitado! Tudo teria sido diferente se ele tivesse mais malícia.
        Rita recostou-se na poltrona.
        — Você quer mesmo que eu more aqui?
        — Uma pessoa sozinha atrai muita desconfiança. E você é a única pessoa em quem posso confiar, nas atuais circunstâncias... e que posso trazer até aqui.
        — Há mais alguém?
        Lena fixou o olhar num estranho quadro que representava uma sigilária, tipo de planta fóssil do grupo dos fetos.                            
        — Confio no meu diretor espiritual, mas esse é claro que não posso trazer para cá. E nem arriscá-lo... já são tão poucos os padres secretos!     

(*) Moeda oficial em Lemuel.