Ato solene em que o prefeito de Barras Edilson Capote descerra o símbolo municipal do busto de Dr. José do Rêgo Lages
Ato solene em que o prefeito de Barras Edilson Capote descerra o símbolo municipal do busto de Dr. José do Rêgo Lages

[Dílson Lages Monteiro*]

Senhores e senhoras.

No século XIX, a vida da extensa comunidade de Barras do Marataoã se confundia com um nome, cuja ações e ideais ultrapassaram o tempo. Seu nome: José Carvalho de Almeida. Comandante da Guarda Nacional na Vila de Barras do Marataoã, faleceu em 16 de julho de 1869, aos 99 anos. Descendem quase todas as antigas famílias desta cidade de sua figura; ele, pai de 16 filhos. José Carvalho de Almeida esteve à frente de muitas conquistas de seu tempo e sua Terra Natal se confundia com sua pessoa. Militar, deputado provincial, presidente da Câmara Municipal de Campo Maior a que então o lugarejo de sua origem pertencia, foi por décadas a mais respeitada liderança de Barras.

Muitos dos que escreveram a história do Piauí do século XIX (David Caldas, Miguel de Sousa Borges Leal, Pereira de Alencastre, Pereira da Costa etc.)  registram o papel decisivo dele na vida de Barras do Marataoã, com destaque para sua liderança, estendida para além fronteiras no exercício da atividade militar, e para fatos como a construção da antiga Matriz de Nossa Senhora da Conceição, obra na qual, relatam os historiadores, sacrificara seus haveres.

Seu nome ainda permanece – e permanecerá por todos os tempos –  como fundamental ao desenvolvimento social deste lugar. No século passado, José Coriolano de Carvalho e Silva, médico barrense radicado em Marília, São Paulo, escreveu importantes anotações sobre o ilustre barrense intituladas “O último Carvalho de Almeida”. Mais recentemente, numa série de ensaios sobre Os Carvalho de Almeida, grupo familiar pioneiro no processo de povoamento do Norte do Estado, o genealogista Gilberto de Abreu Sodré Carvalho, de raízes nas terras do rio Marataoã, traçou a trajetória edificante do líder que o foi. Ainda hoje, 154 anos após o desparecimento físico, sua presença indelével na construção das feições espaciais e de mentalidades de Barras, é reverenciada, tal qual o faz o historiador Reginaldo Miranda de Silva, que no monumental livro de perfis biográficos Piauienses Notáveis, tomo II, lançado neste ano da graça de 2023, registra o mais bem escrito e detalhado perfil de sua trajetória, com as contribuições para a sociedade de sua época.

Senhores e senhoras,

Esta cidade que viu nascer José Carvalho de Almeida, ainda na década de 1940, reverenciava a notável liderança de Barras no século XIX, tentando evitar que a morte, que também atende pelo nome de esquecimento, ofuscasse injustamente a lembrança de um nome que o Piauí conservava. Promovia Barras, naquele distante 1941, ações para que os esforços do grande líder da edificação deste município em seus primórdios fossem mantidos na memória coletiva. A esse propósito, escreve o jornalista e escritor Afonso Ligório Pires de Carvalho, no clássico estudo memorialístico Terra do Gado:

“Em 1941, nas comemorações do centenário do município, as autoridades de então resolveram reparar o injusto esquecimento sobre figura tão importante no período inicial de Barras e proclamaram José Carvalho de Almeida Patrono da Cidade” (2007, 111).

Ao longo do século XX, a ação e o pensamento de muitos barrenses incendiaram positivamente a bucólica Barras de tradições seculares. O mesmo ideário de José Carvalho de Almeida é revivido por muitos nomes, mas, especialmente, na segunda metade do século XX, por um nome vivo em cada casa deste município: José do Rêgo Lages. O médico humanitário que fez do exercício de sua atividade profissional uma devoção continuada à sua gente, sem interesses pecuniários, sem nada exigir em troca, que não o bem-estar orgânico, psíquico e social de sua gente. A liderança inquieta, sempre atenta às demandas sociais mais urgentes, para o crescimento da comunidade. O homem de ação e pensamento o tempo inteiro, sonhando em transformar o espaço coletivo para benefício de todos. Em cada casa deste município, sua presença iluminada e recordação vigorosa faz morada, e ecoa entre as gerações de hoje seu nome sonoro: José do Rego Lages. Um homem muito além de seu tempo.

Dr. José do Rêgo Lages, formado em medicina, fixou-se definitivamente neste chão, em 1948. Aqui exercendo diuturnamente a medicina por mais de cinco décadas. Até então, outros barrenses haviam conquistado a mesma proeza da exigente formação em médico: José Pires de Oliveira, Mário Teodomiro de Carvalho, José Coriolano de Carvalho e Silva, Leônidas de Castro Melo. Somente dr. José do Rêgo Lages aqui se estabeleceu com ânimo definitivo para exercer o ofício. Ele trazia em sua essência um sentimento de generosidade incomum, facilmente atestado por todos que o conheceram. Aqui se fez médico às 24 horas, disposto a superar quaisquer obstáculos, movido, conforme relatou em discurso, pelo sentimento de gratidão aos esforços de seu pai, o agropecuarista e comerciante Alfredo Pires Lages, que muito se dedicou para vê-lo formado em Medicina. Por dever de justiça, cabe aqui destacar,qui, também se fixaram definitivamente para viver a medicina,  em tempos mais  próximos os médicos Carlos Monte e Airton Andrade.

Consta na memória oral, que o pai de dr. José Lages, 3º proprietário da lendária fazenda Esperança, onde residia com a mãe viúva Maria da Assumpção Pires Ferreira, diante do cadáver da esposa Rosa Rebello do Rego, morta de parto, com José ao colo, prometera Alfredo mover “céu e terra” para tornar aquela criança médico, para que nunca mais padecesse de parto nenhuma mulher na Zona da Mata de Barras. Assim o fez.

Aqui fixado como profissional da medicina, conforme relato pessoal em discurso de posse na Academia de Letras do Vale do Longá, enfrentou resistências de toda ordem, inclusive políticas. Porém, o mérito e a dedicação as sobrepujaram e, por concurso público, já era em 1953, médico efetivado na cidade natal. Diz: “(...) não tive dúvidas em continuar na luta, até porque Barras passou a fazer parte de minha vida, começava a amar a cidade, sentimento que até então não me havia sido despertado, embora sendo um de seus filhos”.

Não é demais recordar... Começava uma longa e incansável história em favor da existência de serviços públicos de saúde em Barras do Marataoã. Exercer a medicina era também superar um conjunto variado de intempéries.

Conta dr. José Lages:

“A falta de médicos na região, a grande extensão territorial do município, o sistema rodoviário precário, a escassez de transporte rodoviário levaram-me, muitas vezes, a deslocar-me em costa de animais para atender a doentes em estado grave de saúde”.

Acrescente-se a isso, variantes como a inexistência de infraestrutura básica de atendimento. Ele diz:

“A falta de instalações físicas para o setor de saúde, de recursos humanos para atividades primárias de saúde, a incidência elevada de patologias endêmicas na região, a prevalência das doenças infectocontagiosas dominantes onde são precárias as condições econômicas da população, os índices elevados de mortalidade”.

Acrescenta:

“As atividades médicas se caracterizavam pela presença do profissional; os procedimentos médicos, em sua grande maioria, eram executados em ambientes rústicos, somente aceitáveis pelo desejo maior de salvar vidas humanas”.

Nada disso encurtou sua ação entusiasmada para salvar vidas e para Barras ter sua casa de saúde: de seu labor contagiante, surgia a Legião Brasileira de Assistência e, em 1956, depois de enérgica luta, o Hospital Leônidas Mello, e integrado à outra conquista de seu fazer, o SESP, que funcionou por mais de uma década sob seu comando, com resultado que colocava a unidade entre os melhores do Nordeste. Desativado o SESP, em 1969, dr. José Lages consegue em 1970, a reabertura do Hospital Leônidas Mello, dirigido por ele até 1986, quando passa a ocupar a direção da Regional da Saúde, que aqui se instalava.

Para com mais propriedade discorrer sobre as contribuições únicas de dr. José do Rêgo Lages, nada mais apropriado que ouvir a voz de quem com ele esteve  - direta ou indiretamente - nas trincheiras da melhoria dos indicadores de saúde no município, seus pares médicos. Entre eles, está o professor universitário dr. Aécio Carvalho, médico barrense de bem-sucedida atividade profissional, que muito contribuiu com o Piauí. Assim diz sobre as contribuições e as vivências de dr. José Lages:

“Atendendo a todos, sem distinção de classe econômica ou social. Era clínico, pediatra, obstetra sobremodo, fazendo a medicina de urgência que era possível e fundamentalmente como médico da família.

A sua competência profissional se expandiu pelos municípios vizinhos de Batalha, Nossa Senhora dos Remédios, Porto, Matias Olímpio, Esperantina e Luzilândia”.

Acrescenta:

“O Dr José Lages conseguiu através da LBA a construção do posto de Puericultura, que tinha como demanda a criança, mães, gestantes e puérperas. Era feita a distribuição do leite já preparado para suplementar o aleitamento das crianças.

Passou a ser um líder na comunidade. Com os demais partícipes da sociedade, fundou Clubes, incentivou o esporte e criou o curso ginasial.

Junto com o Pároco, Prefeito, Juiz de Direito e demais membros da sociedade, criou a Fundação Mariana Pires Ferreira que deu origem à Unidade Hospitalar da FSESP e posteriormente ao Hospital Regional Leônidas Melo, que se tornou referência no atendimento a todos os municípios da macrorregião dos Cocais, sediando também o CRUTAC - Centro Rural de Treinamento e Ação Comunitária e de Ensino da Universidade Federal do Piauí.”

Onde havia a presença de dr. José Lages existia excelência em servir. Foi assim, conforme ainda dr. Aécio Carvalho, a gestão de dr. Rêgo Lages à frente, por exemplo da Regional de Saúde:

“O Dr José Lages tornou a Regional de Saúde de Barras a mais  eficaz do Estado. Cobertura vacinal acima da Meta do Ministério da Saúde, o Programa de Reidratação Oral bem sucedido em todo o Brasil foi motivo de menção honrosa para aquela Diretoria, bem como o projeto de formação de Recursos Humanos para Saúde daquela Regional”.

Do pensamento de que dr. José Lages foi único na vida comunitária e de saúde de Barras, desfruta, também, o ginecologista Gisleno Feitosa, que viu em dr. José um exemplo, um mestre, um amigo, um pai e nele procurou referências. Sobre a trajetória de seu mestre, conta:

“Numa época de escassos recursos tecnológicos, dr. José Lages praticava uma medicina de alto nível, exclusividade baseada na propedêutica, anamnese apurada e exame clínico minucioso. Era clínico geral, tudo resolvia; porém era na obstetrícia que mais se destacava.

Como clínico, chegou a salvar a vida de pacientes que apresentavam sensação de morte iminente, pela presença do edema agudo de pulmão, realizando a sangria terapêutica de urgência, cuja eficácia, naquela época estava em absoluto demonstrado.

Fosse a cavalo ou num aguerrido Jeep Willys, atendia a todos os chamados com o mesmo dinamismo e diligência.

Como obstetra, chegou a atravessar riachos, com água na cintura, protegendo os instrumentos para a execução dos partos. Realizou partos à luz de velas, candeeiros, lampiões ou faróis de carro, com pacientes deitadas sobre portas de madeiras ou sobre uma esteira de palha no chão de terra batida.”

Ressalta:

“Como não era praxe a cobrança de honorários, a remuneração frequentemente era feita através de cabeças de animais, que ele não aceitava, compadecido com a situação de penúria da maioria daquelas famílias”.

O sentimento de toda a Barras quanto aos feitos de dr. José Lages, enfrentando às gigantes adversidades de seu tempo, acham-se bem resumidas nas palavras do historiador e memorialista Antenor Rêgo Filho, ao discorrer sobre o empenho do médico idealista na luta para Barras ter sua casa de saúde:

“ (...) Foi o jovem recém-formado o artífice de toda essa obra, tarefa árdua, luta titânica; somente um destemido, forjado em têmpera forte, chegaria até a reta final erguendo aquele templo da medicina. O hoje Hospital Leônidas Melo, outrora indicativo de uma das melhores medicinas praticadas no Piauí, índice de referência para médicos de outras plagas estagiarem.

Lá naquele hospital, que dirigiu até aposentar-se, o inominável esculápio passou noites indormidas, dias assoberbados, muitas vezes solitário, vidas foram salvas, criaturas vindas ao mundo pelas mãos competentes do velho mestre. Há que se perguntar qual de nós, barrenses, tenha dependido um só tostão para pagamento de uma consulta ou atendimento ao devotado profissional!

(...) O monumento destinado à saúde que ergueste para todos os barrenses e piauienses será sempre o “Hospital do Dr. José do Rêgo Lages”.

 

Senhores e senhoras,

Neste dia histórico em que Barras do Marataoã reverencia a memória de Dr. José do Rêgo Lages, reverencia-se também o lugar da generosidade nas relações de sociabilidade, da generosidade que lhe era, antes de um desejo, uma característica natural e, por isso, moralmente estimável.

Diz o filósofo moralista André Comte-Sponville que

“(...) a generosidade como todas as virtudes, é plural, tanto em seu conteúdo como nos nomes que lhe prestamos ou que servem para designá-la. Somada à coragem, pode ser heroísmo. Somada à justiça, faz-se equidade. Somada à compaixão, torna-se benevolência. Somada à misericórdia, vira indulgência. Mas o seu mais belo nome é seu segredo, que todos conhecem: somada à doçura, ela se chama bondade” (2012:113).

Em dr. José do Rêgo Lages, a generosidade, ou como queiram chamar, bondade, se personificava. De tal sorte, que abundam relatos de sua energia benfazeja, sem interesses pessoais, em favor dos conterrâneos, seja no exercício da medicina, seja como cidadão, seja como liderança política. Seu desprendimento e naturalidade de agir com altruísmo, reverbera em palavras como a do comunicador e escritor Chagas Botelho, surgidas ao passar diante do Hospital Lêonidas Mello em viagem à cidade natal. Ele  voltou à sua meninice para contar:

“Era uma noite chuvosa. De céu relampejante e trovões ensurdecedores. Mesmo assim, minha mãe, toda jeitosa, me levou ao doutor José Lages que era um servidor pontual. Eu devia ter uns sete para oito anos quando um homem, todo de branco, todo paciente, começou a apertar minha barriga. Deitado, medroso e apreensivo, tremia só de pensar em tomar injeção.

Porém, o atencioso doutor José Lages, homem que fazia da profissão o seu sacerdócio, logo acalmava aquele pivete ressabiado. Aliás, ele tinha uma receita infalível para meninos temerosos a médicos: um pirulito pré-consulta e em forma de bengala. Com seu gesto cuidadoso, o doutorzinho apaixonado pelo ofício de atender bem, pôde, enfim, examinar calmo e sereno o meu desarranjo estomacal.

Ele constatou que o motivo das dores atrozes e recalcitrantes (...). Prescreveu uma medicação simples, no entanto, providencial e a entregou à minha mãe. Ela agradeceu aliviada ao médico franzino que usava óculos de lentes côncavas e de mãos que demonstravam vasta experiência”.

Prossegue:

“Ao final do atendimento, como ainda chovia a cântaros, o doutor de voz mansa, voz acolhedora, nos ofereceu carona em seu Chevette branco e de modelo tubarão. Quase não acreditei que voltaria para casa de carro, e no carro do doutor da cidade. Sentado no colo de minha mãe, eu me lembro que passava os dedos perscrutadores pelo banco aveludado e o acariciava como quem acaricia um bichano de estimação. Ou como quem está encantado com um brinquedo novo.

Essa doce lembrança me deixou por demais emocionado. (...) Se tivesse chorado, não teria sido por medo de injeção, e sim por saudade do médico amigo do povo. Antes do veículo em que passeava dobrar a esquina, antes da fachada do hospital Leônidas Melo desaparecer, imaginariamente, vi o doutor José Lages me dar tchauzinho”.

Para finalizar, recorremos as palavras cirúrgicas e uníssonas de dr.  Manoel Monte Filho e dr. Delson Castello Branco, membros da Alval e profissionais de sucesso. Dele disse, prof. Monte Filho:

“José Lages foi uma das maiores lideranças de todos os tempos. Ele nunca teve apego pessoal para ser cabeça na política. Gostava de sugerir, porque estava muito ligado à saúde. Ele teve uma visão muito além dele. Teve tanto poder, tanta influência, mas optou por não ser deputado estadual, federal, porque a paixão dele era o hospital, onde vivia como se fosse a própria casa. Nasceu para ser cidadão; um cidadão que honra a todos nós”.

Dele disse dr. Delson Castello Branco:

“José Lages foi um raro exemplo de fidelidade à disciplina de Hipócrates, o pai da medicina: aliviar a todos, curar quando possível e consolar sempre. Foi um exemplo de humanitarismo, cumpria nosso difícil ritual: via no paciente o que ele buscava em nós. Tinha um ar supremo de bondade e paciência para todos que o procuravam. Nunca quis sair de Barras, aqui nasceu e aqui morreu deixando nesta terra o seu dever de médico e a sua conduta de cidadão”.

Viva a memória viva de Dr. José do Rêgo Lages!

*Dílson Lages Monteiro é titular da cadeira 21 da Academia Piauiense de Letras e da cadeira 30 da Academia de Letras do Vale do Longá. Autor de 20 livros, sendo o mais conhecido deles O morro da casa-grande, que tem como tema central a preservação do patrimônio imaterial de Barras do Marataoã, sua cidade natal.