[Carlos Evandro Matins Eulálio]

Foram dormir na boquinha da noite. Mas antes acertaram o que fazer no dia seguinte.

Amanhã, disse o marido, antes de receber minha aposentadoria no banco, te deixo no hospital, e tu aproveita pra consultar  o médico. Vê lá o que ele diz sobre o caco de vidro enfincado no dedo de teu pé.”

Assim fizeram. Cedinho, ela estava no hospital, tirando a senha da consulta. Quando chegou a vez, o médico de plantão examinou-a e sugeriu que se dirigisse a outro setor, pra aguardar a cirurgia, ainda naquela manhã. Era uma coisinha simples, assegurou-lhe.    

Ultimamente, aquilo tem sido um transtorno. Não podia pisar firme no chão, que sentia pontadas no dedo grande do pé esquerdo. Fazia dias sentindo aquelas dores, principalmente na hora das aulas, quando escrevia pra garotada no quadro, e se movia de um lado pro outro. Davam aquelas pontadas. Difícil imaginar como aquele caco de vidro foi parar ali. Talvez, quem sabe, quando varria o quintal da casa.

Pelas dez da manhã, o marido recebeu o dinheirinho e correu às pressas para o hospital, supondo que a mulher estivesse ansiosa a sua espera. Chegando ali, logo perguntou por ela. Informaram-lhe que estava na sala de cirurgia. Sentou-se num banco, pertinho da porta do centro cirúrgico. Ao meio-dia, começou a inquietar-se. Deu uma hora da tarde e nada. Lá pelas três, viu passar uma padiola em direção à enfermaria. Pelos cabelos que saíam do branco lençol, não teve dúvida, era sua mulher. O enfermeiro confirmou, dizendo-lhe: “logo ela vai voltar da anestesia.”  

“Mas como? Anestesia geral, só pra tirar do dedo do pé um caquinho de vidro?” No prontuário dela estava escrito: “extração de um corpo estranho do primeiro pododáctilo ou hálux do pé esquerdo”. Disse-lhe a atendente. Quando ouviu esse palavreado, não teve dúvida. O caso era mesmo grave.   

Pois é, e o pior viria mais tarde. A infeliz só foi acordar do pileque da geral pelas oito da noite, dizendo, para espanto de todos, que era um pedaço de isopor.

A essa altura, todos em casa estavam apreensivos pela ausência dos pais. Os filhos, quando souberam da notícia, acorreram ao Hospital. Por mais que fizessem, não conseguiam convencer a mãe de que era de carne e osso e não de isopor. Em seguida, chegou também a psicóloga do SUS, pra ajudar no complicado resgate de identidade da mulher. Mas a coisa só foi terminar pela meia-noite, quando, finalmente, ela voltou a si. Embora livre daquela ideia absurda, ainda meio tonta, tentava agora, apoiada no marido, reconhecer os cômodos da casa onde moravam há vinte anos.  Enquanto isso, dizia para si: nunca mais ia a médico por causa de um caquinho de vidro fincado no dedo do pé.