Dia desses, abri o matutino eletrônico e lá estava a notícia do roubo do quadro "O grito", de Munch. O espanto veio mais pela frustração futura, pois sempre, em meus sonhos de dias abastados, planejei visitar o museu de Munch para poder desfrutar daquela que é uma das minhas obras favoritas. Não pelo roubo! Isso parece ser contumaz naquele museu. Sou otimista e, enquanto os dias de fartura não chegam, aguardo a notícia de que a tela foi recuperada.
   Mas não é para tratar do roubo do quadro que estou aqui diante do computador: não sou repórter policial! Interessa-me falar um pouco sobre "O grito" e de uma experiência estética de rara profundidade a qual fui submetido recentemente. 

   Estava em Porto Alegre participando do encontro da ABRALIC, o frio era assustador, mas não o suficiente para me manter no hotel em um dos raros momentos de folga que tive. Principalmente por saber que meu hotel estava muito próximo da Casa de Cultura Mário Quintana e de meia dúzia de sebos riquíssimos. Em uma greta de tempo saí para o meu turismo histórico/literário, me acompanhavam dois amigos da UFSC, Cristiano Sales e Jaqueline Barboza - conosco, ainda, uma aluna de Letras da UFRGS, Juliana Grunhauser (Ju, desculpe se afanei alguma letra), esta, gentilmente, se encarregara de nos mostrar os sebos.
    Caminhávamos em direção ao hotel que fora a última morada de Quintana, quando deparamos com um prédio belíssimo e Jaqueline, que também é gaúcha, nos ensinou que aquele era o antigo prédio dos correios e que agora abrigava a Fundação Santander. Naquele momento estava sendo exibida uma exposição chamada "HIPer>", tendo Daniela Bouso como curadora, com explorações de meios tecnológicos para produzir arte. E, coincidentemente, esse é o assunto que tem drenado quase toda minha atenção nos últimos tempos. Me fascina e incomoda os experimentos que alguns artistas têm feito lançando mão de imagens, holografias, efeitos sonoros, experimentos com transmissão de informações, poesias eletrônicas, diários íntimos comunitários, RPGs, até mesmo, as já banais e.poems. O tempo era curto e a tentação imensa. Entramos para dar uma volta rápida, só pra sentir pra que lado o vento está soprando nessa fronteira da arte. Do lado de fora, soprava o terrível vento sul dos Pampas. Lá dentro a temperatura era muito aconchegante.
    Visitamos diversas instalações interessantes, inventivas, algumas impressionantes, outras assoladoras. Pularemos as primeiras e nos concentraremos na última categoria. E dentro desta, trataremos de uma que considero devassadora. Chama-se "Union", de Bill Viola. Mas antes de chegar nela retomemos um pouco de "O grito", de Munch.
   O leitor bem informado sabe de que obra estou tratando, mas para os que não sabem farei uma breve descrição e alguns comentários sobre o que a crítica diz do quadro. Ele foi pintado no final do século XIX, por Edvard Munch, pintor de origem Norueguesa. Munch fez uma série de 4 quadros, retratando o mesmo objeto, ou seja, não é uma obra única, mas uma série. Nessa tela observa-se um homúnculo com as mãos sobre os ouvidos, a boca muito aberta, em sinal de um violento grito. Ao seu redor o ambiente tem o vermelho, laranja e amarelo como cores predominantes e essa ambiência é composta por contornos ondulados. As feições daquele ser é de pavor. As mãos sobre os ouvidos indicam a impossibilidade de ouvir o entorno exterior ao quadro, e o grito parece ser pela impossibilidade de aquele pequeno homem poder se fazer ouvir. As ondulações que o cercam indicam o poder das ondas sonoras que ele emite, mas que não são ouvidas por qualquer outro, que na realidade seria um outrem, pela incapacidade de se fazer chegar as ondas sonoras aos ouvidos dele. O homúnculo está preso e incomunicável dentro da tela, mas de sua janela para o mundo pode observar perfídias, violências, vícios. Sofre por não poder se fazer ouvir, sofre pelo enclaustramento, sofre pela humanidade.
 
    Nós, que observamos o quadro, sofremos junto, pela nossa incapacidade de entrar em contato com aquele ser que tanto deseja se comunicar. Pela total incompreensão diante de algo tão urgente que ele precisa dizer. Daí, talvez, possamos concluir da capacidade antecipatória (devo o termo a Cortázar) do artista que, naquela época, já denunciava tempos em que entre homens já não haveria comunicação e que o ruído seria a mensagem (McLuhan) e seria tudo. O homúnculo preso em seu écran de tecido rústico, sequer consegue emitir o ruído tão valorizado nesta época de poucas sílabas. E por isso ele grita. E nós, surdos, nos encantamos com seu desespero.
    Na exposição HIPer>, o que mais me perturbou, indubitavelmente, foi a instalação performática chamada "Union", que na brochura da exposição diz: "Mostrados lado a lado, um homem e uma mulher se contorcem sob uma intensa tensão emocional desconhecida. O trabalho é um documento sobre a condição humana e nossa ansiada luta pela totalidade e  perfeição." Mas isso é muito pouco!
Veja uma foto dessa instalação:
http://www.jamescohan.com/artists/billviola/index.html?page=2&num_pages=2&image=665
    Deixe-me começar descrevendo a montagem. Trata-se de duas televisões de tela de cristal líquido, extremamente delgadas, colocadas uma ao lado da outra em posição de totem, ou seja, a parte mais comprida fica na posição vertical. Elas medem em torno de 1,20 por 0,50m. Sendo que numa a figura é de uma mulher nua, dos primeiros pêlos pubianos até uma altura acima de sua cabeça. Na outra, a disposição é a mesma, sendo que nesta se trata de um homem. A imagem move-se em câmera lentíssima. Imagino que a seqüência que duraria 10 segundos em velocidade normal, mas consome 8 minutos. Então, os movimentos, às vezes, são imperceptíveis. Mas, como o homúnculo de "O grito", eles emitem um grito de pavor e suas feições ficam completamente distorcidas pelo terror que os assalta. Mas, novamente, como em "O grito", o filme é mudo. Os atores estão nus, desprovidos de qualquer vaidade, mas demonstram uma aflição incomensurável. A mesma agonia que Munch retratou em seu "O grito". Só que diferente, pois este tratava de uma premunição e era especulativo. Enquanto Bill Viola cria o seu "Union" justamente para informar que o Asmodeu moderno já está entre nós e que a angústia de não encontrar sequer um único ser humano para dividirmos nossas simples e bobas preocupações JÁ É. Existe um universo de 6 bilhões de pessoas que não conseguem falar a mesma língua. Somos 6 bilhões de seres híbridos que , além das características fenotípicas, não guardamos mais nada uns dos outros. Já não temos generosidade, amor, fraternidade, simpatia. Somos o que somos, andróides feitos de carne e osso. Sem direito a qualquer sentimento positivo, lutando por nossas causas egoístas e mesquinhas. Viva "O grito"! Viva "Union"! Obrigado a Munch e a Viola. Danemo-nos nós, surdos!