Pedro Mastrobuono
Pedro Mastrobuono

Do berimbau ao pódio: por que a capoeira merece um lugar nas Olimpíadas

 

Pedro Mastrobuono

Presidente da Fundação Memorial da América Latina

 

 

A capoeira já não cabe apenas nas rodas das praças ou nos terreiros da Bahia. Reconhecida pela UNESCO desde 2014 como patrimônio cultural imaterial da humanidade, hoje ela reúne cerca de 8 milhões de praticantes em mais de 150 países, sendo 6 milhões apenas no Brasil. Nascida como resistência africana no Brasil escravista dos séculos XVIII e XIX, tornou-se uma das expressões culturais mais potentes da diáspora afro-atlântica e começa a mirar um novo horizonte: o movimento olímpico.

Pouco mais de um século atrás, a capoeira era criminalizada. O Código Penal da República, de 1890, previa prisão e até deportação de estrangeiros que praticassem “capoeiragem” em ruas e praças. Aquilo que foi reprimido como subversão é hoje celebrado como símbolo nacional e patrimônio da humanidade. Esse percurso, do estigma à consagração, mostra a capacidade de reinvenção cultural da prática, que transformou marginalidade em identidade.

Pesquisas etnográficas revelam a ponte entre a capoeira e o engolo, jogo angolano marcado por chutes acrobáticos e movimentos invertidos. O berimbau, que comanda a roda, é parente direto de arcos musicais africanos como o hungu, e sua presença no Brasil confirma a memória atlântica que une Angola e Bahia. Mestres como Vicente Ferreira Pastinha souberam resgatar essa filiação africana, afirmando a capoeira como herança e continuidade. Não se trata apenas de um jogo ou de um esporte, mas de uma cosmologia corporal, em que o círculo da roda encena um microcosmo social, os cantos transmitem pedagogia oral e os corpos em inversão celebram a travessia da resistência em gesto simbólico.

Tenho insistido publicamente, em artigos como “Os Ventos Sopram em Dialeto”, publicado em 12 de abril de 2025 na Folha de São Paulo, e em livros como O Ofício do Vento – Sonetos sobre Cultura e Poder, que a capoeira deve ser reconhecida não apenas como patrimônio, mas também como modalidade esportiva a ser incluída no programa olímpico, à semelhança de práticas culturais transformadas em esporte como o skate, o breaking e o surfe. Essa defesa não nasce de oportunismo, mas de uma vida dedicada à museologia, à proteção do patrimônio e ao estudo antropológico das culturas latino-americanas. Como pós-doutor em Antropologia Social, tenho plena consciência de que um povo se reconhece a partir daquilo que celebra como memória coletiva. O patrimônio imaterial é mais do que registro: é o eixo invisível que sustenta identidades, dignidades e direitos.

Nesse sentido, a capoeira já cumpre funções que a projetam além de uma prática corporal. Suas cantigas difundem a língua portuguesa e sua liturgia ensina estrangeiros a ginga, ladainha, mandinga, transformando a roda em espaço de diplomacia cultural. É, de fato, o maior difusor da língua portuguesa falada no Brasil, muito mais do que qualquer telenovela de exportação. Milhares de praticantes aprendem fragmentos de português ao redor do mundo, em uma pedagogia espontânea de integração. O som do berimbau e o canto das ladainhas são hoje tão universais quanto a bola de futebol.

Mas há uma contradição gritante: se a capoeira se expande pelo mundo, dentro do Brasil ela ainda está ausente de onde deveria ser mais forte, nossas escolas públicas. Ela não faz parte do material didático, nem das atividades cívicas, culturais ou esportivas oferecidas aos alunos. Da mesma forma, as religiões e cosmovisões de matriz africana e indígena permanecem praticamente invisíveis no currículo oficial. Como se a identidade brasileira pudesse ser ensinada apenas a partir da herança europeia, ignorando que a alma nacional se forjou no encontro profundo entre povos africanos, originários e europeus. Essa lacuna perpetua uma visão distorcida de nossa história. Já passou da hora de a cosmovisão afro-diaspórica e indígena ocupar o centro de nossas escolas, como parte fundamental da formação cidadã.

Do ponto de vista da museologia, tenho escrito em artigos anteriores que as contribuições negras e indígenas tendem a aparecer como notas de rodapé, tratadas como coadjuvantes quando lembradas, e não como protagonistas da identidade nacional. Mas a verdade é que não há como compreender o Brasil sem essas matrizes. A religiosidade, a linguagem corporal, a música, a culinária, a oralidade e a filosofia que atravessam o nosso povo nasceram muito antes da chegada europeia. Continuar a marginalizá-las é perpetuar uma narrativa de exclusão. Reconhecê-las como centrais, pelo contrário, é fazer justiça àquilo que somos de fato.

O reconhecimento da profissão de Mestre de Capoeira, previsto no Projeto de Lei 3.640/2020 em tramitação no Senado, também representa um avanço decisivo. Formalizar o ofício significa dar direitos trabalhistas e previdenciários a quem carrega a tradição, além de abrir portas para acordos internacionais de mobilidade no Mercosul. Um próximo passo pode ser o estabelecimento de tratados de reconhecimento mútuo entre federações nacionais, consolidando um caminho de um caminho de profissionalização que respeita a herança cultural.

O desafio agora é estruturar a capoeira como modalidade esportiva olímpica. Isso exige uma federação internacional sólida, regras padronizadas, arbitragem qualificada, adesão ao código antidopagem e um calendário competitivo reconhecido. É um esforço que vai além da técnica: é um gesto político e cultural. Propus, inclusive, que Brasil, Angola e Mercosul articulem um Seminário Internacional sobre Capoeira e Patrimônio Afro-Atlântico, capaz de produzir uma declaração conjunta a ser encaminhada ao Comitê Olímpico Internacional e à UNESCO. Seria um passo simbólico e estratégico, reforçando a legitimidade da capoeira como linguagem afro-diaspórica e fortalecendo a candidatura à agenda olímpica.

A capoeira é luta, dança, música e rito. É patrimônio, profissão, diplomacia cultural e prática esportiva de alcance mundial. Sua entrada no movimento olímpico não seria apenas a inclusão de uma nova modalidade, mas o reconhecimento de uma epistemologia corporal da diáspora africana, forjada na resistência e projetada para o mundo. Do porão dos navios negreiros ao pódio olímpico, sua trajetória seria um ato de justiça histórica, reafirmando que o Brasil, ao celebrar a capoeira, oferece ao mundo uma das mais belas sínteses entre cultura, corpo e liberdade.

 

Por Pedro Mastrobuono

Presidente da Fundação Memorial da América Latina

Agraciado pelo Senado Federal com a Comenda Câmara Cascudo por sua trajetória na defesa do patrimônio cultural brasileiro

Conheça a trajetória de Pedro Mastrobuono:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Machado_Mastrobuono