UMA LIÇÃO DE JOSÉ GUILHERME MERQUIOR

Cunha e Silva Filho

         Não fui procurar a data do um artigo sobre poesia de José Guilherme Merquior (1941-1991).. Apenas tenho dele o recorte e não escrevi a data à margem do texto. O artigo é do tempo em que escreveu para o Globo numa coluna com título “A vida das ideias,” que muito traduz do seu estilo de ensaísta, historiador e pensador brasileiro.

        Dele também li muitos artigos publicados no velho e extinto Jornal do Brasil, Caderno Ideias. Costumo guardar alguns recortes do que me chama a atenção, recorte sobretudo de escritores brasileiros. Muitos perdi em mudanças ou porque não tinha espaço onde guardá-los; Eram muitos. Nem mesmo sei ao certo quantos ainda tenho. Lembro-me de artigos de Tristão de Athayde, Afrânio Coutinho, crônicas de Drummond, de Oto Lara Resende e ultimamente de Ferreira Gullar (crônicas ).

       Falemos, contudo, do mencionado artigo de Merquior que tem o título algo simples: “Um pouco de poesia.” O título pouco sinaliza para a importância analítica do tema tratado: a discussão entre a poesia de corte conteudístico e a das vanguardas. Ora, a quem lê textos do grande crítico, o tom do texto carrega certa virulência e mesmo alguma ironia. Merquior era provocativo e polêmico. Podia-se dar a esse luxo, porquanto lhe sobrava erudição (não obstante ter vivido tão pouco), extrema capacidade argumentativa, não bastante ser ele um conhecedor profundo da literatura universal além de dominar toda uma leitura teórica do seu tempo em vários campos do conhecimento humano.

       O núcleo do seu artigo – discussão entre poesias pura, hermética, experimental e a poesia de estofo tradicional ou modernista (cita, por exemplo, a superioridade de Gonçalves Dias sobre o redescoberto Sousândrade, a poesia comunicativa e “humilde” de Manuel Bandeira) - é, por si só, fortemente controverso, visto que abre fogo contra poetas herméticos estrangeiros e incensados pela crítica universitária com a qual sempre, a meu ver, manteve certa distância, posto que tenha sido professor na Universidade de Brasília.

       Lembremos que sua formação literária, filosófica e sociológica, políítica era apenas uma tendência inescapável de seu intelecto, tendo em vista que, por profissão, fora diplomata. Mas, nesses campos do saber, atuou de forma notável, não só por ter se doutorado em Letras pela Sorbonne, com uma tese sobre Carlos Drummond de Andrade, de título Verso universo em Drummond, defendida (1976) como também também realizou estudos na London Economics School.

       O debate por ele levantado no artigo em exame visa ao seu posicionamento quanto à questão entre, conforme ressaltei linhas atrás, a declarada preferência de Merquior pelos poetas nos quais a poesia tenha como grandeza maior a sua forma e não o culto fetichista da mera “técnica,” da obscuridade, da falta de clareza e naturalidade, enfim, da ausência do - se assim podemos simplificar -, do “assunto.”

      Daí o ataque do autor de A astúcia da mimese(1972) contra poetas de renome como Eliot, Eza Pound, Saint-John Perse, Edgar Allan Poe. O que a crítica de Merquior subentende é a valorização que ele dava a poetas tal foi o caso de René Char, cuja poesia era, segundo Merquior, de “(...) um praticante de extrema concentração do sentido pela fuga sistemática da denotação.”

       A Merquior agradava poetas da estirpe de Yeats, Kavafis, Valéry, Rilke, Pessoa, Ana Akhmatova, Lorca, Vallejo, Drummond, Manuel Bandeira. Para ele, esses poetas e outros mais souberam renovar a poesia, “ (...) dar voz ao homem contemporâneo sem fazer do poema, a pretexto de radicalização da linguagem, um flácido fluxo de expressões desconexas” que fazem o regalo do que chamou de “pedantocracia, ” uma clara referência aos exegetas da literatura encastelados nas universidades.

      A crítica de Merquior, a se deduzir de um simples artigo de jornal, define, em linhas gerais, o que para ele seria o poeta de todos os tempos, o poeta contemporâneo, cuja elaboração estética para ser original, profundo e comunicativo se assentaria na valorização do poema no qual se fizessem presentes alguns traços que pude pinçar no desenvolvimento de seu arguto artigo: acessibilidade da mensagem poética, naturalidade, humildade, renovação da linguagem sem perder as raízes do que se poderia denominar ”nossos clássicos” do século XX por ele mencionados, qualidade estética da forma, do uso da sintaxe, “memória social,” capacidade que um poema tenha para se tornar “memorizável,” traço este ponderável extraído de um conceito de poesia do poeta Eugênio Montale () assim comentado pelo ensaísta: (...) a poesia obcecada pela técnica reflete um problema mais geral.

      Como a música sem melodia, e a pintura sem figuras, a linguagem sem sintaxe do poema seria um ‘grosseira materialização do ato criador’ levando a uma perda do memorizável. Essa questão do memorizável Merquior já a ela se reportou ao estudar a poesia do piauiense Da Costa e Silva (1885-1950). O crítico, na Academia Piauiense de Letras (APL), em 1985, na conferência em Teresina comemorativa do centenário de nascimento daquele poeta, já assinalava a força lírica que o poeta de Sangue( 1908) tinha para compor alguns poemas que caíram na boca do povo, tais são exemplos, os sonetos “Saudade,” “Amarante,” “Moenda,, entre outros. Ora, tal peculiaridade,não era apenas do poeta Da Costa e Silva, mas de outros poetas brasileiros de estofo tradicional.