Uma crônica para Machado de Assis

     Por Cunha e Silva Filho

     Machado de Assis, cujo centenário de morte (1839-1908) está sendo amplamente comemorado, a começar da instituição cultural que tornou, por assim dizer, sinônimo de sua figura, A Academia Brasileira de Letras, que ele ajudou a fundar em 15 de dezembro de 1896, juntamente com, entre outros nomes ilustres da época, Lúcio Mendonça, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, e da qual foi seu primeiro presidente, não pretende ser, a meu ver, uma unanimidade no elogio dos pósteros. Ainda bem, pois, como diria Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”. 


      Extensa é a programação que para este ano a ABL preparou a fim de render as justas homenagens ao escritor que, mercê do legado de sua extensa produção literária, considerando-se todos os gêneros em que se manifestou o seu gênio artístico, tem crescido na admiração e respeito à sua obra, não só no país, como ainda no exterior. É espantosa a bibliografia passiva machadiana, e mais surpreendente ainda tem sido o alto nível de trabalhos que não cessam de ser produzidos entre nós e além-fronteiras, o que faz jus às palavras gravadas no seu monumento erigido à entrada do Petit Trianon, esculpido pelo artista brasileiro Humberto Gozzo: “Esta é a verdade que fica e eleva, honra e consola.”

 
       Ao falar linhas atrás da falta de unanimidade na apreciação da obra de Machado eu quis me referir ao caráter polêmico em torno da obra do célebre romancista brasileiro. Agripino Grieco, n o seu tempo de crítico militante e provocador já ironicamente divida os leitores machadianos em duas espécies: os machadólatras e os machadófobos. Mas, o fazia, no seu ensaio Machado de Assis (1959 ), só para atazanar os fãs machadianos, conquanto o estudo do temido crítico tenha sido desenvolvido com seriedade e respeito ao criador de Capitu e Quincas Borba.Entretanto, permanece a ponta do sarcasmo quando Grieco sinaliza fontes estrangeiras na obra de Machado, principalmente invocando a influência de Lawrence Stern, Swift, Leopardi, entre outros.


       Machado, como sempre, resiste às alfinetadas autóctones ou além-mar. E por que resiste? Porque sua obra se foi construindo a caminho da perfeição aos poucos, com a perseverança própria dos autodidatas e daqueles espíritos que exibem origem modesta social e economicamente. Basta dizer que de Helena (1876), por exemplo, a Dom Casmurro(1899), a distância de qualidade estética é incomensurável, malgrado, já no início, tenha ele demonstrado traços inegáveis de talento para o domínio da criação literária.


       Machado, no seu canto, em Cosme Velho e no seu olhar oblíquo, no seu humor, agüentou outros trancos. Já se disse que, na sua ficção, não havia paisagem, não havia consciência política, não havia originalidade, entre outras lacunas que se lhe imputavam como defeitos de estrutura romanesca. Tudo está sendo desmentido em estudos recentes sobre sua produção ficcional.


       Ora, tudo que se afirmou contra Machado foi posto abaixo. Brito Broca demonstrou que Machado de Assis nunca foi absenteísta, muito menos na obra, segundo se pode ver em Brito Broca, Machado de Assis e a política e outros estudos (1957) Astrogildo Pereira antes já estudara Machado sob ótica marxista em Interpretações (1944) e em Machado de Assis (1959). Mais recentemente Roberto Schwarz, eminente crítico de formação marxista, lukacsiano, também situou o romancista no amplo espectro de um autor consciente dos problemas sociais e políticos do Segundo Império, conforme podemos ver nos seus estudos de alta complexidade analítica, Ao vencedor, as batatas(1977), Um mestre na periferia do capitalismo(1990) Raimundo Faoro, da mesma forma, dimensionou-lhe o universo histórico-social e os meandros do poder em A pirâmide e o trapézio (1974). O mesmo diríamos dos ensaios sobre Machado, de Antonio Candido (Vários escritos, 1970) Alfredo Bosi,em Machado de Assis (1982), Ronaldes de Melo e Sousa e de outros estudiosos de Machado. Isso sem levarmos em conta a copiosidade de estudos estrangeiros a respeito do Bruxo do Cosme Velho, como os de John Gledson, em Machado de Assis: ficção e história, 1986.


      O mais significativo nos estudos sobre Machado é o amplíssimo leque de áreas de abordagem crítica que até hoje têm sido utilizadas na compreensão do escritor carioca: filosofia (com o pioneiro ensaio de Afrânio Coutinho, A filosofia de Machado de Assis, 1940), psiquiatria, sociologia, marxismo, formalismo, estilística, lingüística, lexicografia, biografia, história, geografia, psicanálise etc, etc. 


      Isso tudo comprova a perenidade de um mestre da narrativa que soube se aperfeiçoar lentamente pelo estudo, pela disciplina e pela vontade de vencer no movediço, por vezes frustrante universo da vida literária. Conta-se que Machado de Assis, nos últimos anos de vida, ainda se abalançava a estudar o alemão, segundo anotações que fazia em cadernos que certamente foram   guardados entre seus pertences.


    Machado será como foi Fernando Pessoa, um escritor que se agiganta com o tempo e com o que se vai desbravando no domínio dos estudos teóricos de literatura, não porque os admiradores o desejem assim, mas porque, independente de seus intérpretes, aqui e alhures, a sua obra de romancista, contista, crítico literário, cronista - sempre atento à realidade à sua volta -, e de poeta cuidadoso com a forma e o pensamento, é feita da essência e do mesmo barro de que se valeram os grandes artesãos da arte literária superior e eterna: Shakespeare, Miguel de Cervantes Saavedra, Milton, Dante, Kafka, Homero, Joyce, Fernando Pessoa, Camões, só para citar metonicamente autores que fizeram da alma humana universal a medida de sua inventividade incomum.