Um amor de 4.000 anos

Por Berilo Neves

- O mais estranho caso que já sucedeu na minha vida - disse o dr. Leonard Hanney, famoso egiptólogo britânico, acendendo, com vagar, o fumo do seu cachimbo - foi o do British Museum, um mês depois da minha excursão científica do Oriente.
- As moças nervosas podem ouvi-lo? Indagou, com uma deliciosa expressão de susto, a loira Marília, filha do adido naval norte-americano, que fazia parte do pequeno auditório de homens graves e senhoras bonitas que escutavam, naquela recepção do embaixador inglês, a palavra erudita de Leonard Hanney.
Lá estava o Almirante Cadaval, com as suas suíças contemporâneas da batalha de Riachuelo; o cirurgião Gabriel fortuna, especialista em abrir o coração das damas e a consciência dos homens; o poeta Esmeraldo Cunha que acabava de editar o segundo volume das suas "Queixas d'alma"; o romancista Leo Rodriguez, uma espécie de Zola, retardatário, das letras indígenas. O mais eram damas cuja beleza era recomendação bastante para dispensar nomes e títulos nobiliárquicos.
- Sim! Conte-nos o mais estranho caso da sua vida - pediram as damas, em coro, acercando mais as suas cadeiras da mesa, onde cristais finos da Boêmia, deixavam ver o âmbar líquido do champanhe.
- Imaginem - começou o egiptólogo - que eu entrei uma noite no British Museum resolvido a dar as características de certas múmias encontradas no subsolo da grande pirâmide de Quéops. De há muito estava desconfiado de que o suntuoso túmulo da ala direita da pirâmide pertencia a um dos mais ilustres fundadores da primeira dinastia egípcia, o soberano sob cujo reinado mais haviam progredido as ciências e artes da grande nação dos Ramsés. Munido das credenciais valiosas que me concedera a Sociedade de Estudos Arqueólogos, penetrei sozinho na grande sala das múmias, sem que o guarda de serviço tentasse fiscalizar os meus estudos e pesquisas. Acerquei-me da múmia 35, em cujo sarcófago se lia a origem e a data da sua descoberta: Quéops - 1920. Era um belo tipo de homem, de largo tórax e de linhas sóbrias e severas. Depois de pesquisar detidamente o interior do sarcófago, sem encontrar coisa alguma de novidade, resolvi examinar as longas tiras de linho que revestiam a múmia. Com um ferro de cirurgia, que sempre trago no bolso, fui cortando as ligaduras e pondo a descoberto o corpo do belo egípcio. A princípio nada notei de curioso, e já ia dar por findo o meu trabalho quando, levantando uma das últimas tiras de encontro à luz, vi qualquer coisa que me pareceram inscrições hieroglíficas. Tomado de súbita impaciência, meti o ferro cirúrgico para desprender as últimas ligaduras, e foi, então, que se passou o caso estupendo...
- Apagou a luz? - perguntou com deliciosa ingenuidade a senhoras Sunders, esposa do cônsul britânico.
- Coisa pior, minha senhora! - disse Hanney, dando um puxão na gola de seu smoking. A múmia sentou-se no seu sarcófago e fitou em mim os seus olhos amortecidos pelo sono de quatro mil anos.
- Que horror! - exclamaram as senhoras, nervosas.
- É como lhes conto - prosseguiu o egiptólogo, cuja cujas palavras se animaram neste ponto decisivo da sua história, com cintilações de apaixonado pelas coisas antigas. - O egípcio atingido pela ponta do meu bisturi, estava realmente vivo, tão vivo como o rei Jorge V, que Deus o guarde no seu palácio de Buckingham. "Onde estou?" perguntou ele, olhando à sua volta, com maior assombro do que o meu, ao que respondi: "No British Museum, entre as múmias da pirâmide de Quéops". Ele pareceu ter entendido apenas a palavra Quéops, mas levantou-se por si mesmo desvencilhando-se das últimas ligaduras e pousou no chão os seus pés nus, de cor trigueira, como se estivesse palmilhando as estradas do inferno. Era um homem de estatura gigantesca, diante do qual os meus escassos um metro e setenta eram um pouco menos do que infantis. "Devo ter dormido muito, não?" - perguntou-me, depois de ter examinado o salão em que estávamos. "Alguns milhares de anos, apenas", respondi-lhe. Disse-lhe o estado da civilização no mundo, o predomínio do Ocidente nos destinos da terra, a decadência do Egito, que era, naquele momento, um mísero protetorado britânico. Ele pareceu incrédulo quanto à morte das dinastias milenares dos Faraós mas não revelou o menor assombro ao saber das maravilhas do trem elétrico, da telegrafia sem fios e do fonógrafo. Alguma coisa mais séria do que tudo isso parecia monopolizar-lhe o pensamento. De repente me perguntou: "E ela, onde está?" Pedi que me esclarecesse melhor. Foi então que me contou a sua história. Era um mercador egípcio cujos negócios o haviam tornado um dos homens mais ricos do seu país. A mulher a que se referia, conhecera na última vez que descera o rio Nilo, carregando os tesouros da sua mercancia. Era filha de um químico famoso daquele tempo, cujo método de embalsamamento fora adotado para conservar o corpo dos reis do Egito quando a morte os tocava com as suas mãos eternas. Tinha uma beleza rara essa mulher que lhe parecera cativa da sua mocidade, forte e vencedora. Combinaram-se os esponsais para quando o Nilo fecundasse, com as suas águas sagradas, as terras escuras das suas margens. Ele havia tido o cuidado de ocultar da noiva o estado próspero dos seus negócios. Dizia-se apenas enviado de um rico mercador do alto Egito. Não queria que o interesse vil do ouro turvasse o límpido céu da felicidade. Dois dias antes das bodas, uma estranha denuncia viera lançar no seu coração a dúvida e o ciúme. Um escrito deixado por mãos misteriosas em seu leito durante a noite, dizia que a sua noiva era a prometida de outro, a quem ela verdadeiramente amava. Estava acertado um plano diabólico para a noite dos esponsais: uma bebida, preparada pelo químico dos reis do Egito, o faria dormir o sono eterno e os seus bens passariam para a viúva de algumas horas. Ele não quis acreditar na informação anônima e celebrou o casamento numa noite de luar e de sonhos. Houve então uma beberagem amarga que lhe disseram que trazia felicidade. E... mais nada. Depois foi um eterno e infinito dormir. Naquela hora compreendia tudo. Fora enganado miseravelmente pela sua noiva. E o seu sono de quatro mil anos era uma espécie de catalepsia (doença que os egípcios conheciam tão bem como os contemporâneos de Charcot).
- Mas então há quatro mil anos que as mulheres já enganavam os homens? - perguntou o romancista Rodriguez, acendendo um cigarro.
- São as múmias que o afirmam - respondeu Hanney no mesmo tom. - Levei o egípcio para o meu hotel. Passou por entre os automóveis buzinando e as ruas iluminadas como se nada lhe fosse estranho. Quanto pode um ciúme de quatro mil anos! Mandei que lhe preparassem um banho morno. No dia seguinte, quando me dispunha a fazer-lhe um interrogatório sobre o estado das ciências no Egito antigo, encontrei sua cama vazia. Ninguém deu notícias dele, ninguém!
- E acabou-se a história? - indagou, com o dedinho rosado apoiando o queixo, a filha do adido naval norte-americano.
- Não, não. Dois dias depois um guarda do British Museum encontrou fora do seu sarcófago e despida de suas faixas uma múmia da pirâmide de Quéops. Era uma mulher.
- Uma mulher?
- Sim, e tinha a cabeça separada do tronco e o corpo picado a ponta de navalha. E era a mais bela múmia do British Museum!
E um longo silêncio baixou entre os presentes, como a boca de cena trágica de um teatro...