Sete tipos de ambiguidade
Por Bráulio Tavares Em: 22/05/2011, às 16H52
Certa tarde, um casal chega a uma livraria e desce ao porão, onde há estantes  cheias de coleções encadernadas. Ali, só um velho funcionário à mesa, e um  adolescente folheando um livro caro, que ele não tem dinheiro para comprar, e  que o velho lhe cede para ler, algumas páginas por dia. O velho atende o casal;  o homem explica que veio comprar uma grande quantidade de livros. Que livros?,  pergunta o velho. Ele hesita e acaba lembrando o nome de um autor: “Charles  Dickens! Já li alguma coisa dele e gostei”. Diz ao velho que gosta de livros,  mas trabalha desde a infância, nunca teve tempo para ler. Agora está bem de  vida, tem dinheiro, e acha que precisa botar a leitura em dia. Comprou uma  estante e botou na sala. Quer as obras completas de Dickens e... não consegue  lembrar nenhum outro autor.
O velho pede ao adolescente (que é freguês da  livraria, conhece tudo ali) que ajude o cavalheiro. O garoto, feliz de poder  ajudar, começa a dar palpites: “O sr. gosta de Dickens? Pois leve esse cara  aqui: George Meredith! Muito bom!”. A esposa do cara lembra um livro que gostou:  Jane Eyre. O rapaz mostra ao cliente as obras completas das irmãs  Bronte. O homem manuseia, elogia as encadernações. Diz que quer levar muitos  livros, pois acabou comprando uma estante enorme e tem que enchê-la toda. Vai  separando coleções: Mark Twain, Thackeray, Jane Austen... No final pergunta ao  adolescente que livro era aquele que ele lia. O rapaz: “Sete Tipos de  Ambiguidade, de William Empson. Um livro de filosofia, muito bom! Mas custa  muito caro, não posso comprar”. O garoto se despede, vai embora. O homem manda o  velho empilhar as coleções que escolheu, dezenas de livros. Na hora de pagar,  pede para ver o livro que o rapaz lia. O velho mostra. Ele diz: “Será que o  garoto vai ter dinheiro para comprar esse livro?” O velho: “Não, não vai poder,  é uma edição cara”. O cara diz: “Nesse caso, levo esse também.” Paga, vai embora  com a esposa e o conto acaba aí.
É um conto de Shirley Jackson (publicado  em 1948) e eu acabei de lê-lo agora, com um calafrio final de terror. Vejam o  que é a literatura. Se fosse um conto meu, o cara comprava o livro ao velho e  deixava de presente para o rapaz, como incentivo. O conto teria uma mensagem  humanista e todo mundo ficaria feliz, principalmente eu mesmo. Mas Shirley  Jackson me jogou num universo paralelo de terror, onde os monstros são criaturas  que nunca leram, nunca puderam ler, tiveram que se matar de trabalhar desde  cedo. Quando querem ler, não adianta: estão ricos e vazios. Gastam tudo quanto  têm para tapar esse vazio, com livros que não lerão porque é tarde demais. A  história é norte-americana mas me jogou num Brasil de gente pobre que não  consegue ler porque só trabalha, trabalha. E quando um desses, que enriqueceu  trabalhando, é capaz de comprar livrarias inteiras, não é capaz de ler um livro.  Não é capaz sequer de perceber a existência de uma pessoa que está ali, do seu  lado.

                                                        