Se o pique com Gregório é ambiguidado por versos picantes; para lê-lo, há que se-despudorar dalguma rima ou valor
Por Luiz Filho de Oliveira Em: 24/12/2009, às 16H31

Luiz Filho de Oliveira
(Haroldo Vieira, da "série de mulatas".)
A vida de Gregório de Matos e Guerra, assim como o-foi a sua produção literária, é cheia de lacunas, que, não raro, deixa seus biógrafos divergindo em algum dado. O primeiro deles é a sua data de nascimento; neste caso, de aniversário, natividade, porquanto quero homenageá-lo hoje, mesmo que seja num dia errado. Por que o-faço? Primeiro, porque estou n’atividade; mas, sobretudo, por ser 23 de dezembro o “último prazo”, já que o outro dia apontado é 20 de dezembro (conforme Pedro Calmon). O certo é que o “Boca do Inferno” nasceu em Salvador, Bahia, em 1636, ou seja, há 373 anos. Apesar dessa distância, leia-se o quanto ele está atualíssimo em tantos poemas, em particular, no soneto “A cada canto um grande conselheiro”. Esse texto (falescrevo) fá-lo, a partir de leituras dos espanhóis Lope de Veja e Luís de Gôngora y Argote (sendo influenciado por eles), assumir certa repulsa pela tradição do Renascimento literário aqual o soneto encerra. Em resposta ao tom petrarquizante desse tipo de composição renascentista, aparece a sátira de tradição medieval, mais mordaz (muitíssimo!) em nosso bardo da Boca de Inferno, escrita, sobretudo, em velozes versos redondilhos maiores cadenciados, algumas vezes, pela assonância das rimas toantes, herança dos romanceiros da Idade Média.
Gregório, em sua sátira, foi mesmo desconcertante, já que expunha a “cidade da Bahia” a um antinarcisismo inconveniente aos poderosos. Pra não dizer que ele não falou de prostituição infantil ou pedofilia, temas da moda (dá?), leiam um exemplo de suas profanas escrituras, no romance “Já que me põem a tormento”, para ilustrar sua atualidade temática com o tempero de sua lira maldizente:
Elas por não se ocuparem
com costuras, nem com bilros,
antes de chegar aos doze
vendem o signo de Virgo.
Ouço dizer vulgarmente
(não sei, é certo este dito)
que fazem pouco reparo
em ser caro ou baratinho.
O que sei é que, em magotes
de duas, três, quatro, cinco,
as vejo todas as noites
sair de seus esconderijos.
E como há tal abundância
desta fruta no meu sítio,
para ver se há quem as compre,
dão pelas ruas mil giros.
Parece até que Gregório acabou de vir de uma volta por aquele ponto de nossas cidades, reservados aos “negócios da carne”. É ou não é? É, porque o ser-ou-não-ser, há muito, é morto. Contudo, previno-os: Gregório foi uma criança, um adolescente e um adulto bem criado. Neto de um português, Pedro Gonçalves de Matos, teve, em parte, às mãos oque seu Pai, Gregório de Matos (ao Boca do Inferno foi acrescentada somente a Guerra!) herdou. Isso não era de pouca monta, como diria Joaquim Maria. Não. Como um colonizador que queria enriquecer na Colônia, o avô de Gregório, de empreiteiro de cargas e construção (ele tinha um guindaste que transportava mercadorias da Cidade Alta para a Cidade Baixa, em Salvador, àquela época!), passou a criador de gado, plantador de cana e senhor de engenho. O pequeno Gregório foi beneficiado com tal fartura até os quatorze anos, quando partiu para Portugal depois de estudar sete anos no Colégio dos Jesuítas. Vida privilegiada. Educação de primeira praquela época.
Em Coimbra, Gregório de Matos estuda Cânones (ainda não se-chamava Direito), bacharelando-se nove anos depois, em 1661, aos vinte e cinco anos. Neste mesmo ano, casa-se com Michaela de Andrade,
Assim, é que, na Bahia, a vida de Gregório de Matos deixa de ter a obrigação de obedecer a certos preceitos e regras da sociedade daquela época, oque não é de se-estranhar, já que, em Lisboa, ele teve um caso extraconjugal, do qual nasceu uma filha, que ele batizou com o nome de Francisca, cuja mãe chamava-se Lourença Francisca. Vixe! E isso em pleno casamento, na Corte. Como ele aprendeu tudinho! Daí, não é difícil imaginar o quanto ele aproveitou na Bahia. Como o êxtase dos portugueses ao ver as índias nuas, ele deve ter-se-extasiado com as mulatas, crioulas, negras, oque fosse (mesmo que manifestasse ferrenho preconceito racial em alguns de seus textos). Foram dez anos de vadiagem, de trocadilhos picantes como este:
MOTE: Pica-me, Pedro, e picar-te-ei
ENCONTRO QUE TIVERAM DOUS NAMORADOS
Jogando Pedro e Maria
os piques sobre a merenda,
vi, pois, que sobre a contenda
Maria picar queria:
ela, que a Pedro entendia,
disse então: aqui d’El-Rei:
Pica-me, Pedro, e picar-te-ei.
Abrasado, em vivo fogo,
Pedro, que o jogo sabia,
disse, eu te pico, Maria,
por que tu me piques logo:
disse ele, pois o teu fogo
é dos melhores que achei,
Pica-me, Pedro, e picar-te-ei.
Picou Pedro, e de feição,
que a Maria fez saltar:
quis ela também picar,
pois que assim picado a hão:
picados ambos estão:
diz Maria o jogo sei,
Pica-me, Pedro, e picar-te-ei.
Pedro, que já se enfadava
de picar, queria erguer-se;
Maria quis mais deter-se.
porquanto picada estava:
disse ela que, então, gostava
do jogo, que lhe ensinei:
Pica-me, Pedro, e picar-te-ei.
(Gregório de Matos e Guerra)
Brejeiro! Que sutileza de contenda nessa cena apresentada. Ainda bem que Gregório, mesmo tendo uma formação clássica, teve oportunidade de ler e assimilar a poesia satírica de Portugal e de Espanha. Esse gênero que, em grande parte, é tachado de maldito, talvez por conta (dos comentadores) de os poemas serem dados, assim, crus, como nestas décimas a seguir, em que o Boca do Inferno chega ao ponto de rimar "Jesu(s)" com "cu". Que absurdo, dirão os cristãos, mas, a Gregório, nada escapa. A crueza dessa rima em u é somente pretexto pra ele pintar esta outra cena daquele século:
AO MESMO CAPITÃO FRETANDO-LHE A AMÁSIA CERTO HOMEM CHAMADO O SURUCUCU
DÉCIMAS
Passou o Surucucu,
e como andava no cio,
com um e outro assobio,
pediu a Luísa o cu:
Jesu nome de Jesu,
disse a mulata assustada,
se você é cobra mandada
que me quer ferir da escolta
dê uma volta e, na volta,
poderá dar-me a dentada.
Apenas isto escutou,
quando a boa cobra solta
deu a volta, mas a volta
não foi a que a namorou:
porque o bom Adão achou
no Paraíso, ao entrar,
sem poder a Eva falar,
jurando o seu nome em vão,
pecou no segundo então,
por no sexto não pecar.
O seu Santo nome disse
em vão: mas o capitão
perguntou a Luísa então
a causa da parvoíce:
ela, porque ele ouvisse,
toda de risinhos morta,
este mandu (disse absorta)
não repara que se implica,
marchar eu com outra pica,
tendo o Capitão à porta?
Saiba, Senhor Capitão,
que, se Luísa se fornica,
antes com homem de pica,
que com homem de bastão:
porém, se este toleirão
quiser vomitar peçonha,
pois na sua cara vejo
que terá muito de pejo,
mas tem mui pouca vergonha.
Prometeu vir do passeio,
veio como um corrupio,
eu não vi homem tão frio,
que tão depressa se veio:
sobre ser frio é mui feito;
sobre ser feio é mui tolo;
porém, se o meu portacolo
não erra, tem o magano
nos culhões muito tutano,
na testa pouco miolo.
(Gregório de Matos e Guerra)
Disso se-percebe claramente o quanto de habilidade linguística tinha nosso Boca. Tradição essa, primeiro, nas cantigas de escárnio e de maldizer galego-portuguesas, que também foram responsáveis pelo registro do sermo vulgaris ibérico, a fala do vulgo. Não tanto assim como o padre jesuíta José de Anchieta foi para o tupi (o primeiro a escrever-lhe uma gramática e o primeiro a escrever textos nessa língua, no caso, falas de personagens de peças de teatro), Gregório deu uma boa contribuição para o registro do léxico baiano ligado aos africanos e aos nativos brasileiros do século XVII, gravando nomes de tipos, de objetos, de costumes... Sem falar (se falar, cuidado) na linguagem chula. Essa é uma festa. Nomes pra cona (não conhece?), pro có (que pode ser atrás ou na frente), pro órgão masculino, há por repetidas vezes. É uma parte muito quente de sua obra essa poesia satírica. Como ele cantou da vida baiana por uns termos tão desconcertantes.
Porém Gregório de Matos e Guerra (1636-1695/96) nem sempre foi isso. Em sua obra, sobretudo, porque nela pesa a sua formação europeia, ele realizou, sem nenhum escrúpulo, a “imitação de modelos” de poetas portugueses e espanhóis (o que já havia feito Sá de Miranda, Antônio Ferreira e Luís de Camões com Francesco Petrarca, por exemplo), e produziu uma poesia nos moldes do Maneirismo/Barroco europeus; oque, segundo seus biógrafos, rendeu-lhe fama e prestígio em Portugal. É evidente que essa postura literária de “imitar os modelos”, tão comum àquela época, de certa forma, anulou muito a sua autoria, principalmente, por conta das “cópias, transcrições e adaptações” que fez de autores-modelo. Apesar de essa parte de sua obra ter sido muito valorizada, a meu ler, o vate baiano, na sua originalidade de “poeta maldito” (de texto e de cadeia ou, se quiser, de fato e de direito) produziu melhor na outra linha de sua poesia, a “poesia baiana” (aquela em que retratou fidelificticiamente a Bahia e suas personagens), cujo valor é originalíssimo em seu conteúdo, uma verdadeira crônica de costumes da Bahia do século XVII, e em sua linguagem, um falar popular de tom picante (com trocadilho, por favor) e “desbocado”, devido ao caráter satírico, fescenino, escatológico dos textos.
Um Gregório incomodou muita gente, incomoda-a, porque é desconcertante mesmo, e aqui estou-me-referindo somente à sua “poesia baiana”, ler versos como estes, atualíssimos na Bahia dos carnavais dentro-e-fora-de-época: “De dous ff se compõe/ esta cidade a meu ver/ um furtar, outro foder”, referindo-se à cidade de Salvador, que àquele tempo contava com cerca de três mil casas, segundo dados da época. Se Gregório não era lá esse modelo de conduta, seu “aprendizado” na Corte, nesse “curso” tão difícil que é a sobrevivência, deu-lhe um “jogo e cintura” dotado de muita malícia, dissimulação, hipocrisia, preconceito, características que sedimentarão sua poesia erótico-satírica. Além disso, esse aprendizado deu-lhe também as instruções de como viver numa Bahia tão perigosa, cheia de jogos de interesses e de mortes. Afinal, há que sobreviver de qualquer jeito. Esse é o plano.