Saudades do ensino de literatura de ontem, sem a "mise en scène" de hoje e tal...

 

(Era para ser uma frase, acabou virando um “textículo” que dedico a Maria Luzia dos Santos Sisterolli).

 

Se antes muitas pessoas que se consideravam acadêmicas e encenavam com citações de poetas, críticos e teóricos da literatura, agora com certas redes sociais, como o facebook, se tornou cada vez mais recorrente a encenação literária que os franceses chamam de "mise en scène”.  Uma expressão muito bonita para não dizer em meu português mato-grossense: “leitor que é leitor não encena, bebe palavra por palavra, folha por folha ou gota por gota”. Mais ou menos esse o significado.

O difícil é suportar "mise en scène" em debates de congressos, seminários e outros eventos de literatura. As pessoas encenam ser leitoras quando na verdade são pseudinhas de trechos literários e de obras nunca dantes navegadas, diria meu Fernando Pessoa. Pior ainda são as citações de poemas de anônimos que se passam por Drummond, Cecília Meireles e o preferido de muitos, Fernando Caio de Abreu, sem contar no estrago visual com as obras de nossa grande Clarice Lispector. “Mãe de Deus e Nazaré”, diria João Grilo do filme O Auto da Compadecida, baseado na escritura do dramaturgo nordestino Ariano Vilar Suassuna, autor também de O santo e a porca que pode ser lida depois de ler Aulularia, lembrem disso.

É por causa das posturas antiquadas dos que leem auto-ajuda e dissimula ter lido Shakespeare, que eu aprendi a silenciar para observar esse teatro de patetas que se professam intelectuais. E chego a ter saudades da época em que a professora Nismária e eu nos reuníamos (numa cidadezinha qualquer) para trocar leituras, discutir Octavio Paz, Paul Valéry, Alfredo Bosi, Antonio Candido, etc...

Tenho saudades da poetisa Maria Luzia dos Santos Sisterolli (da Academia Jataiense de Letras) quando sentava com ela para trocar experiências de leituras de obras literárias. Eu arrepiava ao vê-la recitar trechos de Os Lusíadas e toda a obra de Fernando Pessoa e o poeta goiano que ela dizia ser dela: Gilberto Mendonça Teles. É um presente desmedido ouvir a poetisa Sisterolli declamando Ismália de Alphonsus de Guimaraens. É impagável! Confesso que, das leitoras especialistas em Camões que li, creio que depois da acadêmica de honra Cleonice Berardinelli, vem essa leitora Sisterolli que o povo nem tem ouvido falar, mas foi uma das leitoras extraordinárias que tive o privilégio de conhecer. Uma das escritoras do GEN - Grupo de Escritores Novos de Goiás e autora de Perfil de poesia. Não estou me referindo à professora doutora com projetos cadastrados ou não no CNPq ou com Pós-Doc. Refiro-me a Sisterolli leitora imensurável que sempre foi. Ela conversava comigo sobre literaturas e sem compromisso com correntes críticas do século XX e teorias pós-estruturalistas e blá blá blá de Félix Gatarri e Michel Foucault. Leiam o parágrafo abaixo antes de fazer análise de meu discurso que acabei de escrever.

Por favor, não vão achar que estou ficando louca e dizendo que a leitura da obra de Foucault e Guatarri seja desnecessária. Ou pensarem que eu nunca tenha visitado as páginas de História da loucura ou que esteja pregando a lei de uma literatura menor e contra Franz Kafka. Li Metamorfose muito antes de fazer Letras, pois um dia achei uma coleção de livros jogada no lixo e tinha Kafka no meio. Esse foi um dos meus maiores achados até hoje. Na verdade, na verdade, vos digo que quero deixar de ver "mise en scène" na academia que é bem diferente.

Deixando a escovação de ossos acadêmicos para uma vidinha muito simples, mas arrebatadora, sinto saudades de um aluno adolescente que me parava na rua para pedir os contos da “Série Para Gostar de Ler” porque o menino lia mesmo... Os olhos do aluno (da Oscar Soares) brilhavam! Como era bom sentir esse ato inesquecível! Como era bom reunir com meus alunos do período vespertino na “Escola Estadual Dr.Ytrio Correia” e fazer roda de leitura, discutir literatura de verdade. Selecionava 19 obras literárias diferentes porque eram dezenove alunos e os livros não podiam ser repetidos.  Era um critério meu para despertar o interesse pela leitura e evitar que eles cometessem o mesmo pecado de ouvir a história O Ensaio sobre a cegueira de José Saramago que uma professora universitária, na época ingênua, pediu para alunos de quinto semestre de Letras lerem e contarem o enredo e outras partes da narrativa. E a sala, salvo engano, não leu a obra de Saramago. Isso me doeu na alma! Doeu mais saber que a professora não conhecia o Saramago também como poeta e não ter lido O Evangelho segundo Jesus Cristo e outras obras.

Detalhadamente, recordo-me de uma aluna que leu Saramago e contou a história para a sala toda e assim a maioria procedeu à "mise en scène" no Curso de Letras. Ah, se fosse comigo! Iria repetir a frase popular que gosto muito: “Macaco sempre sabe em qual pau sobe”.  Letras não é para qualquer um. Sempre digo para quem confunde demanda no Vestibular de Letras com a conclusão do Curso. O grande problema tem sido a aceitação de "mise en scène". Em consequência, muitos chegam a concluir Pós-Graduação em alguma coisa e se dizem letrados e leitores sem saber que Padre Antonio Vieira escreveu também O Sermão do Mandato e que todos os seus sermões podem ser baixados no site da USP gratuitamente e não precisa ler resumo de internet e chegar ao professor que, algumas vezes, não leu também e fazer "mise en scène" com frases prontas de facebook. Nada contra a rede social porque eu faço parte dela. O buraco é mais profundo. Sinto o gosto da náusea drummondiana no asfalto quando isso acontece. Sinto a morte do leitor sempre quando alguém se diz formado em Letras e nunca chorou com a aurora de Morte do leiteiro. Aposto que alguns vão “googlear” para saber quem escreveu. Já é um passo para a leitura! Vale também ouvir o poema na voz do próprio poeta. É só googlear, ler e ouvir. Só não vale dizer que foi Paulo Coelho o autor de Morte do leiteiro e postar no facebook, principalmente se forem egressos do Curso de Letras.

E por conta da minha repulsa a fingimentos de leitores, hoje acordei nostálgica. Lembro-me ainda de que eu levava Camões lírico para meus alunos da EJA na “Escola Estadual Deputado Oscar Soares” e eles adoravam ler, incluindo Castro Alves... E eram alunos que chegavam cansados na sala de aula. Mas lia o poema Vozes da África como O POEMA. E eu era muito feliz. Mesmo ganhando pouco, eu era feliz porque não tinha fingimento e nem encenação camuflada de leitura. Eles não precisavam provar nada para mim. Precisavam ler e reler por prazer, assim como nos ensinou Ítalo Calvino quando define “o que é um livro clássico”, em sua obra A importância de ler os clássicos.

Atualmente, eu sinto falta das pequenas coisas e das pessoas simples que me aplaudiam com um poema que eu levava para sala de aula. Sinto saudade de como meus alunos me recebiam na sexta-feira e diziam que eu estava bonita, que meus olhos brilhavam mais naquele dia porque a aula era de literatura. Estou começando a detestar essa “academia dos aparecidos” que se vangloriam com um título e chegando a pensar que eu era mais feliz com minha vida de professora de Educação Básica.

Não obstante, isso não significa que eu queira voltar a dar aulas no ensino básico e que eu não admire os bons professores desse nível educacional ou que eu me sinta superior a eles por causa de um ou dois títulos de qualificação docente. O certo é que a minha vida tomará outro caminho com a formação de professores e eu não aprendi a conviver com a indisciplina, problema muito comum com certos alunos das escolas de ensino básico. Estou nostalgiando e reafirmando que eu amo as minhas escolhas como professora de literatura, não importa o nível de ensino, não importa qual o rumo que minha vida tomará em 2013 depois da conclusão de meu doutorado em Estudos Literários. O que não suporto é "mise en scène" literária nesta academia de egocêntricos. Amo leitura e reverencio o autor Luiz Carlos Cagliari desde o momento poético em que eu li sua frase mais conhecida: “A leitura é uma herança maior do que qualquer diploma”.  Só espero que não copiem a frase do professor de fonética e digam que é minha. Tenho dito. Amém.

 

(Rosidelma Fraga para o Portal Entretextos. Visite Poiesis em: http://rosidelmapoeta.blogspot.com. Obrigada pela visita. AVISO: Voltarei mais tarde para revisar este texto que escrevi num gole só quando abri A retórica do silêncio I de Gilberto Mendonça Teles e senti saudades da professora, ex-colega de trabalho Maria Luzia dos Santos Sisterolli, a quem dedico o texto).