Por Herasmo Braga

Ensaísta, Crítico Literário e Professor da UESPI e da Pós-Graduação em Letras da UFPI / Doutor em Literatura Comparada e Pós-Doutor em Filosofia.

 

Introdução

 

No âmbito das abordagens sobre Literatura, alguns questionamentos compõem o cenário habitual de indagações, tais como: qual a função da literatura e qual seria sua real serventia? Perguntas constantes, respostas múltiplas, infindáveis interpretações possíveis. Ao associarmos prováveis diálogos entre as interpelações hermenêuticas de Paul Ricoeur com a produção ficcional de  Dostoievski, encontraríamos algumas linhas seguras em que muitos escritores, críticos, ensaístas concebem, mesmo que de maneira não explícita, essa funcionalidade e préstimo da Literatura: constituição formativa do sujeito através de uma poética ética.

Sob a égide compositiva dos sujeitos, sem maiores dificuldades, constataremos as presenças da ficção, da experiência e da narrativa, tanto nas condições individuais como coletivas. Assim, ideias conhecidas como as de Antonio Candido expressam em inúmeros textos a constante necessidade e a proximidade da ficção tanto no cotidiano ordinário como nas trajetórias gerais dos sujeitos. Destarte, o homo sapiens encontra-se em consonância com o homo fictus. Outro ponto, o da experiência, também não se distancia dos mundos da realidade e da ficção, que atuam paralelamente entre nós, pois, através do compartilhamento das experiências das personagens, dos agentes históricos, das pessoas próximas, é que vai se constituindo o nosso imaginário formativo e de referências, proporcionando além da expansão de significações e percepções, com a mediação das nossas ações diante da vida e do mundo, nos permitindo singularidades e autonomia em face da nossa existência. 

No tocante à narrativa, podemos assegurar, sem cometer qualquer exagero, que somos modelados, esculpidos, formados por ela. Pensamos, refletimos, compreendemos o mundo subjetivo e o mundo externo a nós pelas narrativas desenvolvidas, vivenciadas, memorizadas e produzidas por outrem e por nós. Somos, portanto, simultaneamente, protagonistas e coadjuvantes, narradores e personagens, autor e leitor. Com o auxílio da mimese nas suas concepções de uma ideia de imitação, representação, cognição é que nos unimos à ficção, à realidade, à experiência e à narrativa, significando e ressignificando a nós e os mundos que nos cercam e no qual estamos inseridos.

 

Ainda sobre a experiência... e Ricoeur

 

Em relação às experiências, podemos acrescentar as ideias formuladas e tradicionalmente conhecidas por Walter Benjamin e T.S. Eliot. Benjamin, no texto O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, irá associar a precariedade das grandes narrativas às experiências em baixa, ao mencionar que “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores”. Eliot, por sua vez, em Tradição e Talento Individual, aproxima a formação intelectual da experiência para o diálogo produtivo entre a tradição e o contemporâneo, de maneira consciente, que possa desenvolver um sentido com o passado e, destarte, evoluir enquanto poeta. Na junção dos pensamentos conhecidos, acrescentamos as observações de Paul Ricoeur ao nos exportar questões convergentes e complementares sobre o assunto em discussão. 

Em Teoria da Interpretação, Ricoeur relacionará a experiência em três significativos aspectos, um pelo diálogo, outro pelo mundo, e um terceiro pelo texto. No tocante ao diálogo, diz-nos: “a própria linguagem é o processo pelo qual a experiência privada se faz pública”, diante dessa ideia, retomamos os mencionados Benjamim e Eliot, em especial o primeiro, pois o sentido da linguagem, da narrativa, é muito mais do que apenas comunicar, e o seu intuito primeiro é o de compartilhamento, não apenas de aspectos informativos ou ilustrativos, mas de experiências. Nesse mote se produz sentido construído através da linguagem. Essa é a dialogicidade presente e defendida por pensadores como Bakhtin, e parece nos evidenciar algo até mesmo óbvio, todavia, ainda desacreditado ou pouco refletido, pois a interação dos sujeitos com a linguagem, com narrativas, com sentidos, significados e interpretações, apesar de ser algo de ordem fundante dos sujeitos no mundo e do mundo nos sujeitos, ainda paira certo alheamento a esta maneira de concepção dialógica e de construção de sentido. 

Paul Ricoeur perscruta esse entendimento ao nos proferir: “A linguagem não é um mundo próprio. Nem sequer é um mundo. Mas porque estamos no mundo, porque somos afetados por situações e porque nos orientamos mediante a compreensão em tais situações, temos algo a dizer, temos a experiência para trazer à linguagem”, sob a égide deste intento, quando o poeta Mário Faustino poetiza desde o título: Vida toda linguagem “[...] Vida toda linguagem,/ vida sempre perfeita,/imperfeitos somente os vocábulos mortos/com que um homem jovem, nos terraços do inverno,/contra a chuva,/tenta fazê-la eterna – como se lhe faltasse/outra, imortal sintaxe/à vida que é perfeita/língua /eterna,” ratifica essa maneira mediadora como atua a linguagem e converge nas atribuições dadas por Ricoeur à linguagem na exploração do mundo materializado e imaginado nos indivíduos.

 

Consciências, autonomias, personagens, indivíduos...

 

Não por acaso, Teoria da Interpretação encerra-se com a ideia “Se a referência do texto é o projeto de um mundo, então não é o leitor que primeiro se projeta a si mesmo. O leitor é antes alargado na sua capacidade de autoprojeção, ao receber do próprio texto um novo modo de ser”, sendo assim, as forças atuantes da linguagem, ao se estruturarem em narrativas, elevarão aos sujeitos o ganho formativo e não apenas de situacionalidade diante das interpretações e informações sobre a realidade circundante. O desenvolvimento da racionalidade direciona os sujeitos na formação de uma consciência que levará os seres a uma autonomia. Advertimos que essa ideia não coaduna com os idealismos românticos de senhor de si, independência de outrem, mas o ser pensante dotado da capacidade de discernimento e de condução ética nas suas manifestações sociais e subjetivas, como esboça Ricoeur como uma das atribuições da Literatura. Desse modo, podemos ilustrar em Memórias do Subsolo quando narra: “O caso todo, a maior ignomínia, consistia justamente em que, a todo momento, mesmo no instante do meu mais intenso rancor, eu tinha consciência, e de modo vergonhoso, de que não era uma pessoa má, nem mesmo envaidecida; que apenas assustava passarinhos em vão e me divertia com isso”, assim, ao nos referirmos à condição de consciência, consequentemente, a autonomia das narrativas se dará nos enredos perante o conceito aristotélico da verossimilhança.

Mikhail Bakhtin, ao analisar as produções de Dostoiévski, no intuito de esboçar uma poética em Problemas da poética de Dostoievski, nos dirá que a “Autoconsciência, enquanto dominante artístico da construção da personagem, não pode situar-se em concomitância com outros traços da sua imagem; ela absorve esses traços como matéria sua e os priva de qualquer força que determina e conclui a personagem”, desta forma, a consciência do autor distancia-se do narrador e o personagem irá provendo a sua ao longo das experiências com si e com os demais no decorrer da intriga. Essa autoconsciência será substantivada através da fala das personagens, pois ela o individualiza e torna a manifestação dos seus pensamentos singularizados diante de todos os outros elementos compositivos da narrativa, como qualifica Bakhtin mais adiante ao enunciar: “Na ideia de Dostoiévski, o herói é o agente do discurso autêntico e não um objeto mudo do discurso do autor. A ideia do autor sobre o herói é a ideia sobre o discurso”, portanto, a polifonia tão propagada nos romances do escritor russo constitui essa apropriação discursiva de uma ideia formulada por consciências autônomas e individualizadas nos enredos. 

Ao nos direcionarmos na acepção desta formulação artística, observamos que ela vai muito mais além do mero recurso narrativo “inovador”, acaba por proporcionar a busca de uma expansão mais significativa da narrativa por meio da linguagem em prol de um sentido, conforme podemos interagir no diálogo com Paul Ricoeur em A Metáfora Viva, ao pronunciar que: “[...] é um traço significativo da linguagem viva poder levar sempre mais longe a fronteira do não-sentido. Talvez não existam palavras tão incompatíveis que um poeta não possa lançar uma ponte entre elas; o poder de criar novas significações contextuais parece ser ilimitado, e tais atribuições aparentemente ‘insensatas’ (nonsensical) podem fazer sentido em algum contexto inesperado. O homem que fala jamais esgotará os recursos conotativos de suas palavras”. Portanto, se ao homem o processo do seu reconhecimento passa através da validação do seu falar, da sua enunciação, pois revela o seu posicionamento de pertencimento ao mundo e o situa em determinados lugares sociais, podemos associar também que nos personagens o princípio é o mesmo. 


 

A ética em Dostoiévski sob a tomada poética em Ricoeur

 

Importante nos atermos que a potência da fala só se tornará válida se produzir sentido, e este deve pertencer aos seres, atendendo tanto aos anseios particulares como os coletivos. Assim, no tocante a essa ideia, encontramos a ética como princípio e item primeiro da narrativa e dos seus compartilhamentos mediante as visões de Ricoeur e Dostoiévski, como podemos ilustrar neste mais um fragmento de Memórias do Subsolo ao referenciar que, “Repito, repito com insistência: todos os homens diretos e de ação são ativos justamente por serem parvos e limitados. Como explicá-lo? Do seguinte modo: em virtude de sua limitada inteligência, tomam as causas mais próximas e secundárias pelas causas primeiras e, deste modo, se convencem mais depressa e facilmente que os demais de haver encontrado o fundamento indiscutível para a sua ação e, então, se acalmam; isto é de fato o mais importante”. Observamos nas vertentes expressas que a autoconsciência se encontrada também vinculada ao se reconhecer como limitado, no sentido de ter a consciência do muito a viver, conhecer, aprender, e com isso ações apresentadas e amparadas por princípios éticos tornam o homem menos vulnerável e com possibilidade expansiva da sua compreensão de si e do mundo circundante. 

Essa incapacidade perceptiva acontece muitas vezes quando somos conduzidos por “bezerros de ouro”, como nos propõe o herói de Memórias do Subsolo: “O ruim (ainda sou eu que o digo) é que as pessoas então talvez se sintam felizes com alfinetes de ouro. Pois o homem é estúpido, de uma estupidez fenomenal. Ou, melhor, embora ele não seja de todo néscio, não há nada no mundo que seja tão ingrato”, isso ocorre por não desenvolvermos a nossa intelectualidade formativa que nos possibilite o discernimento pela ética dos valores e sentidos da vida, sem cairmos em pragmatismos doutrinários ou relativismos estéreis que acabam sendo muito do que temos assimilado na contemporaneidade. 

Ao invés de reconhecermos a capacidade transformadora e formadora das narrativas, acabamos tomando-a como algo à parte, alheio a nós e, quando muito, servindo apenas aos desejos de entretenimentos, de passatempos. Associamos a exclusividade do processo narrativo apenas aos momentos ficcionais ou de produção histórica. Nos poucos momentos em que nos furtamos da superficialidade de entendimento da quase exclusividade da presença da narrativa em nossas vidas, apenas nos vieses ficcionais e até mesmo históricos ocorrem as nossas leituras e interpretações, sendo direcionadas apenas para aspectos externos e reivindicativos, tornando a produção narrativa como atividade reparadora de dilemas sociais, de produtos reivindicativos históricos e legítimos, todavia, isso acaba por comprometer a qualidade da narrativa e o desenvolvimento ético possivelmente presente, manifestados na expressividade através da linguagem. 

Ricoeur em diálogo com Santo Agostinho nos trará pertinente percepção acerca de importante questionamento de “como mensurarmos o tempo sem recorrermos a instrumentos mecânicos que nos dão uma ideia cronológica superficial sobre ele?” No mesmo tom da indagação, como estabelecer valor ao tempo? Paul Ricoeur nos diz no primeiro volume de Tempo e Narrativa: “[...] o tempo se torna tempo humano na medida em que está articulado de maneira narrativa; em contraposição, a narrativa é significativa na medida em que desenha as características da experiência temporal”, portanto, apenas através das narrativas é que percebemos e qualificamos o tempo, seja por meio de experiências individuais, coletivas, mas todas estarão imersas no tempo sob a égide de alguma narrativa em que atuamos como protagonistas, coadjuvantes ou meros espectadores/leitores/receptores destas significações e ressignificações em tempos que serão alterados pelas conduções destas narrativas. 

Interessante observarmos, segundo Ricoeur, o comportamento do tempo diante da narrativa. No momento de formulação para o desenvolvimento de algum enredo, o tempo se porta de maneira figurada, mas a partir do momento da realização da construção narrativa, o tempo já se encontrará de modo configurado no amálgama do mundo sendo criado e, posteriormente, estaremos frente a uma refiguração do tempo mediante os efeitos catarses da narrativa diante de seus receptores. Esse processo expande as nossas percepções sobre os tempos e qualificam as narrativas pelo compartilhamento de experiências.

Assim, nessa miscelânea de narrativas em que somos absorvidos, vivenciados, memorizados sob a interatividade mimética, temos a presença significativa da identidade narrativa, como nos esclarece Paul Ricoeur “[...] identidade narrativa de um indivíduo ou de um povo, decorrente da retificação sem fim de uma narrativa anterior por uma narrativa posterior, e da cadeia de refigurações que disso resulta. Em suma, a identidade narrativa é a resolução poética do círculo hermenêutico”, neste meio de interpretativo e de abordagens hermenêuticas, a constituição de uma poética não pode ser vista apenas como mera exposição de formas ou teorizações estruturais, mas algo dinâmico, vivo, perceptivo, e se encontra inerente aos indivíduos e nos meios que nos circulam. 

Destarte, quando nos deparamos com uma possível construção de uma poética não só em Paul Ricouer, como também em Dostoiévski, seguindo os passos de Bakhtin, o intuito formulativo nos apresenta uma funcionalidade, como estamos buscando evidenciar ao longo da nossa exposição: a funcionalidade da narrativa como instrumento formativo ético. Vejamos esses aspectos pelos próprios autores em discussão, diz-nos Ricoeur: “Nossa poética da narrativa tanto de cumplicidade como do contraste entre a consciência interna do tempo e a sucessão objetiva para tornar mais urgente a investigação das mediações narrativas entre a concordância discordante do tempo fenomenológico e a simples sucessão do tempo físico”. Dostoiévski, em Crime e Castigo, ressalta: “Mas a questão é a doença que gera o crime ou o próprio crime, por sua natureza específica, de certa forma é sempre acompanhado de algo como uma doença? – ele ainda não se sentia em condições de resolver”. Mediante essas passagens, nos deparamos na junção do tempo, narrativa e reflexão, o caminho que se espera chegar é o da constituição que, para o indivíduo, seja exercida por meio da espontânea alteridade através da compreensão externa de si e do mundo diante dos vastos sentimentos humanos, repletos de contradições e diferenças, que nos ajudam a dinamizar nossas conduções subjetivas e significação, indo mais além do nomear ou mesmo informar-se. 

Ricoeur reconhece na linguagem literária essa potencialidade formativa, como ele nos elucida: “Ora, é principalmente na literatura de ficção que são explorados os inúmeros modos pelos quais a intentio e a distentio se combatem e se conciliam”. Essas contradições e complementações, significações e ressignificações da abordagem da narrativa ficcional faz-nos abandonar o nosso mundo e adentrar em outro, aprendendo na transposição deles com passagens como esta do pensamento de Raskólnikov em Crime e Castigo: “Então, é verdade que as pessoas que são levadas para execução se aferram em pensamento a todos os objetos que encontram pelo caminho?”. Como ser indiferente a essa reflexão, como não nos inquietar e sentir os efeitos desta passagem? 

A figura de quem assimila estas narrativas e se conscientiza delas é imprescindível, como nos aponta Ricoeur: “[...] sem leitor que o acompanhe, não há ato configurante em obra no texto; e sem leitor que se aproprie dele, não há nenhum mundo desdobrado diante do texto”, portanto, não há sentido algum em apenas de conhecer os esboços dos conteúdos, saber-se apenas da noção do conteúdo, sem com isso mergulhar-se no universo destas narrativas em que experiências só são efetivamente compartilhadas e os aspectos formativos consolidados quando se vivencia a indispensável leitura. 

Essa ação no mundo contemporâneo tem se tornado rara, pois, apesar de mais livros e de mais pessoas escolarizadas/alfabetizadas, a leitura voltada para uma mudança de espírito por meio de uma formação ética apresentada por grandes obras literárias como as de Dostoiévski acaba por constituir um desafio longe de ser superado. Quando se reconhece o valor da atitude de seletividade e de assimilação de aprendizagens que possam significar e acrescentar algo na constituição do indivíduo, acaba ficando como mera expressão retórica sem maiores efeitos ou empatias. A transformação pela leitura, em especial pela literatura, continua ainda sendo uma idealização que tem se apresentado no mundo de tantos recursos distrativos, mas indiferente às ações do cotidiano.

Esse pequeno trecho de um curto diálogo do príncipe Míchkin em O Idiota perde toda a sua grandeza diante do nosso pragmatismo com a linguagem, pois, ao expressar: “– Se se zangaram então não fiquem zangadas – disse ele, pois eu mesmo sei que vivi menos do que os outros e entendo a vida menos do que os outros. Pode ser que às vezes eu fale de forma muito estranha [...]”, em nada nos difere ou toca-nos e acaba sendo algo desconsiderável e até mesmo imperceptível para a maioria em relação à expressiva humildade, tolerância e zelo pelo outro. O protagonista de Dostoiévski nos apresenta e nos incomoda por ser tão bom e por não ser reativo às agressões que muitos lhe emprestam sem motivo compatível na relação entre causa e efeito. Ele nos apequena não por ser tão mais, pelo contrário, por ser menos e, desta maneira, nos faz refletir o quanto não somos bons por não sermos tão ético quanto ele. 

Nas escrituras de Dostoiévski nas demais obras, trechos, deparamo-nos com diversas exemplificações éticas em que podemos corroborar o sentido hermenêutico da filosofia de Paul Ricoeur de uma constituição ética através da Literatura, na qual nos defrontamos com uma funcionalidade e serventia com princípios formativos dos sujeitos éticos.