RETRATO DE MINHA MÃE (*)

 Elmar Carvalho

               Fernando Pessoa, em versos, disse que após sua morte, se quisessem escrever sua biografia, não haveria nada mais simples, porquanto tinha apenas duas datas: a de sua nascença e a de sua morte. Minha mãe nasceu no dia 20/11/1933 e faleceu na sexta-feira passada, 26/04/2013. Era de poucas letras, embora tivesse enorme sabedoria de vida, e tinha o que hoje chamam de inteligência emocional. Com efeito, em sua modéstia e simplicidade, era uma mulher muito inteligente e perspicaz. Se eu quisesse resumir este perfil, que tento fazer de minha mãe, diria que o texto insuperável de Don Ramon Angel Jara, bispo de La Serena – Chile, a ela se aplica com exatidão, como se aplica a todas as verdadeiras mães.

Não exerceu cargos e nem funções públicas. E nunca os almejou. Cristo disse que quem desejasse ser o maior, deveria ser o que mais servisse. Portanto, deveria ser o maior e o melhor dos servos. Mamãe (quase) renunciou a si mesma, para servir aos outros. Sua missão, à qual se dedicou de forma obstinada e contínua, sem tréguas, sem férias, sem feriado, sem queixas e sem lamentações ou mágoas, foi cuidar do seu marido e dos seus oito filhos. E como soube cuidar... Nisso foi inexcedível.

Desde o amanhecer até o momento em que ia dormir, não sabia ficar quieta. Sempre tinha algo a fazer. Nisso se incluíam todos os misteres domésticos. Cuidava do marido e dos filhos; limpava a casa; lavava as roupas e as louças; fazia as refeições e chegou ao ponto, durante vários anos, de confeccionar as roupas dos filhos, mormente numa época em que não era costume comprar-se roupas feitas.

Nossas roupas eram bem-feitas, tanto no corte, como na costura, e bem se ajustavam ao nosso porte. Em determinada época, apenas por passatempo, no período em que morava em Parnaíba, passou a confeccionar animais e bonecas de pano ou plástico, para presentear os filhos e alguns amigos, e também ornar sua casa. Eram trabalhos feitos com esmero, com observância de detalhes, enfeites e adereços, que lhe revelaram a sua faceta artística, a que não deu continuidade, porquanto sua vocação ou devoção era, efetivamente, ser esposa, mãe e exímia dona de casa.

Mesmo quando passou a ter colaboradora, jamais deixou de exercitar esses trabalhos. Nunca lhe ouvimos lamúrias por causa de sua dura labuta doméstica. Sentia-se realizada em ser dona de casa e mãe de família. Parecia encarar esse labor extenuante e repetitivo como uma missão sagrada, que lhe dava íntima satisfação e à qual não desejava e nem poderia fugir, ainda que apenas aos domingos.

Das várias mensagens que os netos divulgaram através da internet (facebook) e que publiquei em meu blog, pinço trecho de duas. Este, de meu filho João Miguel, cadete da Polícia Militar do Amazonas, e que, por isso mesmo, não pôde comparecer ao enterro de sua avó: “Hoje o céu está mais alegre. Os anjos cantam. Chega mais uma estrela para brilhar no paraíso. Passa agora um filme na minha cabeça dos momentos que passamos juntos, da alegria que cativava todos, da cumplicidade com a família, da sinceridade que transparecia em seu rosto”. E este outro, escrito por Raquel Guedelha: “Certa vez, vovó comentou com meu irmão, que a imagem da felicidade dela era olhar para o passado e lembrar a época em que o meu avô chegava do trabalho em Campo Maior, e todos os filhos dela, que brincavam na frente da casa, saíam correndo ao encontro do pai para trazê-lo para casa”.

Tinha mamãe o espírito forte e uma grande energia vital. Mantinha sempre o ânimo alegre, sem mágoa, sem ira e sem temores. Não tinha inveja de nada e nunca se maldizia. Não gostava de fuxicos, futricas e fofocas, e, portanto, não se comprazia em falar da vida alheia. Embora não fosse de visitar amiúde as casas alheias, mesmo porque não tinha tempo para isso, tinha a amizade e a estima dos vizinhos, aos quais tinha o mesmo apreço, amizade e consideração. Creio que a sua força e vitalidade provinham de uma Fé singela, mas inabalável em Deus, que ela não alardeava, pois a conservava em seu íntimo, em recanto secreto.

Essa Fé a fez ser sempre uma mulher forte, decidida, embora de trato suave, e mesmo delicado. Cultivava discreta alegria, sem ostentação e espalhafato. Ao trabalhar, em sua faina diária e contínua, cantarolava algumas músicas de sua predileção. Não obstante essa sua postura, soube disciplinar os filhos, com a palavra, com o castigo e com os corretivos, para que fôssemos pessoas do bem e buscássemos a virtude. Nessa seara tivemos, também, o seu exemplo e o de nosso pai, que lhe sobrevive. Contudo, não fomos criados presos, amarrados à barra de seu vestido. Fomos livres e brincamos a valer.

Conquanto tivesse mamãe uma personalidade forte, e tenha enfrentado com galhardia as dificuldades e vicissitudes da vida, que se abatem sobre todas as famílias, sejam percalços financeiros ou doenças, sem nunca esmorecer ou perder a Esperança e a Fé, entretanto, quando a tragédia, pela primeira e única vez, atingiu a nossa família, eu pude imaginar o quanto ela nos amava. Foi quando minha irmã Josélia, aos quinze anos de idade, no auge de sua beleza, carisma e simpatia contagiante, linda e odorífera flor que mal desabrochara, foi colhida brutal e inesperadamente pela morte, vítima de acidente automobilístico.

Minha mãe passou vários dias imersa em imensa tristeza, prostrada em sua alcova, a derramar profusas e sentidas lágrimas; chorou sua filha, como Raquel chorou seus filhos, “sem aceitar consolação por eles, porque já não existem”. A duras penas, sabe Deus com que esforço, conseguiu sair de sua profunda prostração, para cuidar do seu marido e de seus filhos, que dela ainda muito precisavam. Aos poucos, retomou a sua rotina e voltou a tomar posse de si mesma, do modo como sempre fora.

Tinha senso de humor, embora o usasse de forma moderada, e jamais para diminuir ou ridicularizar quem quer que fosse. Certa feita, o meu saudoso cunhado Zé Henrique disse que, quando morresse, gostaria de ser um urubu. Um pouco por influência minha, creio, ele passara a admirar essas negras aves, a sua saúde, a sua missão de limpar o mundo, a sua magnífica coreografia aérea, e até mesmo o seu gingado caminhar de malandro carioca. Minha mãe, sorridente, retrucou-lhe que preferia ser um bem-te-vi, pela sua beleza e alegria. Na tarde de sua morte, ouvi o canto alegre desse passarinho, que já não ouvia há algum tempo, e tive o lampejo de que seu espírito partia para o infinito.

Décadas atrás, minha mãe ganhou um casal de papagaios. Criou-os com muito zelo, carinho e estima. Não lhes ensinou palavrões e nem cantigas indecorosas, como as que hoje nos agridem os tímpanos e a alma em quase todo lugar. Ensinou-lhes belas e alegres canções, inclusive religiosas, conquanto não fosse carola, avessa que era a hipocrisias e falsidades farisaicas.

Graças à sua obstinada determinação nesse mister, o Louro e a Rosa aprenderam um vasto repertório de palavras, frases e cantigas. Era muito engraçado ouvir-se a algazarra festiva dos papagaios, quando eles estavam de bom-humor, pois essas aves, como os humanos, cuja voz eles imitam, parecem ter os seus caprichos, em que alternam momentos de alegre expansão com momentos de sisuda introspecção, ou mesmo de certa melancolia.

Deus concedeu a minha mãe que ela nos preparasse para a sua morte. Ela sempre disse não ter medo de morrer. Quando teve de encarar duas ou três cirurgias, resolveu enfrentá-las de imediato, sem desânimo e sem receio. Os sentimentos negativos, que deve ter tido, em sua condição de humana, guardou-os para si; parecia não desejar contaminar os outros com queixas, medos, mágoas ou desesperanças. Em virtude de sua hepatopatia, um ano atrás, começou a definhar e a apresentar alguns problemas de saúde, ela que sempre fora tão saudável e incansável.

Esses problemas começaram a amiudar, e culminaram com a necessidade de ser internada em hospital de Teresina. Poucos dias depois, com a alteração de suas taxas, como a de potássio, que se elevou muito, e a de sódio, que caiu demasiadamente, seu coração, que era forte e vigoroso, sofreu uma fibrilação atrial, tendo ela que ir para a Unidade de Tratamento Intensivo.

Disso lhe adveio outras complicações, como uma embolia, numa das pernas, tendo ela que ser submetida a pequena cirurgia para retirada do coágulo sanguíneo. Finalmente, ocorreu o seu falecimento, aos 79 anos de idade, na tarde do dia 26, às 15:45 horas. Esse lento e gradativo declínio de sua saúde, contribuiu para que meu pai, minhas duas irmãs, meus quatro irmãos e eu suportássemos a sua morte sem desespero, e com resignação. Os choros foram contidos, silenciosos, ou apenas internamente, sem convulsivos soluços e clamores.

Minha mãe, como já falei, dizia não temer a morte. Dizia isso de forma humilde, sem empáfia e sem ostentação; apenas como quem, de há muito, entendeu-a como parte integrante da vida, ou mesmo como um portal para a continuação da existência, em novo estágio ou nova dimensão do espaço-tempo. Por essa razão, numa das vezes em que a visitei na UTI, disse-lhe para ser forte, rezar e confiar em Deus. Ela, com um fio de voz, dada a sua fraqueza física, porém com firmeza e serenidade, reafirmou-me não temer a morte.

O meu irmão César Carvalho (Neném), quando contei esse diálogo, disse-me, aludindo à circunstância de ser eu poeta:

– Você é doido mesmo... Todo poeta é um pouco doido. Você foi puxar um assunto desse!?

Sou, talvez, mas quem não é? Dizem que todo mundo tem um pouco de poeta e de louco. Além do mais, quiçá, tenha contribuído para reavivar a sua coragem e Fé.

Quando se aproximava a sua viagem a Teresina, para consulta e tratamento, se fosse o caso, minha mãe deu alguns de seus vasos de plantas a uma vizinha, Lindalva, esposa do comerciante Zé Francisco, amigo nosso. Ambos são pessoas boníssimas, e Deus os está abençoando em seus filhos, que estão a concluir os cursos de Radiologia e de Medicina. Recomendou, ainda, que os seus queridos papagaios fossem entregues a um dos filhos. Provavelmente, antevia que meu pai fosse sofrer muito com a visão e as cantigas deles, a lhe provocar lancinantes evocações e saudade, o que já está acontecendo.

Tempos atrás, ela firmou contrato com a funerária Pax União, naturalmente antevendo que o termo de seus dias já se aproximava. Também preveniu a familiares que desejava ser sepultada em Campo Maior, no cemitério do bairro Cidade Nova, ao lado do sepulcro de seu irmão Antônio Horácio de Melo, que fica perto do túmulo de sua irmã Maria dos Remédios e de seu cunhado Zeca Quaresma. Ela, pessoalmente, foi escolher o local, e pediu a sua reserva e marcação. Disso podemos inferir que ela tinha a premonição de que sua hora final já se avizinhava.

Josélia, filha de minha irmã Maria José (Mazé), contou que, na tarde em que minha mãe partiu para a eternidade, sonhara que ela retornava a sua casa em Campo Maior, entrando pelo quintal, cheio das árvores que ela plantou e dos arbustos ornamentais e flores que ela cultivava. Minha sobrinha, admirada de ela haver saído do hospital, lhe perguntou:

– Vovó, a senhora está bem?

Minha mãe, então, lhe respondeu:

– Agora, estou.

Quando Josélia acordou desse sono/sonho ouviu o telefone tocar. Era o meu irmão César Carvalho que ligara para lhe dar a notícia de que mamãe acabara de falecer. Certamente está bem, no lugar de beatitude que o Pai lhe deve ter destinado.

Na manhã do dia em que mamãe morreu, os papagaios começaram a cantar uma das cantigas que ela lhes ensinou. Como uma espécie de premonição, o Louro e a Rosa cantaram o seguinte trecho de hino religioso: “Mãezinha do céu, eu não sei rezar / Eu só sei dizer quero te amar”. O Solimar, um de nossos vizinhos, acrescentou que, após o cântico católico, uma das aves teria pedido: “Vovô Miguel, traz o café”, tendo a outra acrescentado que o queria com leite. Que avezinha mais exigente!...

Pouco antes da chegada do corpo de mamãe, fato ocorrido à noite, os papagaios novamente cantaram o refrão acima transcrito, e também o seguinte trecho de melancólica marchinha carnavalesca: “Oh! jardineira por que estás tão triste / Mas o que foi que te aconteceu? / Foi a camélia que caiu do galho / Deu dois suspiros e depois morreu”. Há quinze dias que meus pais já se encontravam ausentes, ficando eles aos cuidados da Alba, que também os ouviu cantar os versos iniciais do hino religioso. Os animais, que muitos dizem não ter raciocínio, parecem ter os seus mistérios e segredos.

Somos agradecidos a todos os parentes e amigos que nos deram a sua solidariedade, pessoalmente, por telefone ou pela internet, tanto nas visitas ao hospital, como no comparecimento ao velório e ao sepultamento. Na longa noite em que mamãe foi velada, muitos ficaram até o raiar do dia, rezando e nos reconfortando com sua presença. No quintal da casa, os xarás Zé Francisco, o professor e o nosso vizinho, ficaram a noite toda conversando comigo, por mais que eu lhes tenha dito que deveriam ir repousar, pois ambos têm as suas ocupações profissionais.

Muitos choraram copiosamente, embora de forma sóbria. Outros contiveram as lágrimas. Meu pai, minhas irmãs e alguns irmãos derramaram seus prantos, em alguns momentos, mas sem lamentações e sem desespero, porque sabiam que a vida de minha mãe continua em alguma das casas do Senhor da Eternidade – “na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, eu vo-lo teria dito”, garantiu-nos o Cristo (João, 14.2). Ao tombar do dia, mas ainda com sol, entregamos o corpo de mamãe aos cuidados da mãe terra. Sua alma, esta se encontra numa das moradas celestiais, ou “na mão de Deus, na sua mão direita”, como nos versos sublimes de Antero de Quental.

Encerrando redação sobre as mães, que valeria como prova da disciplina Educação Moral e Cívica, no antigo Ginásio Estadual, da qual era professor o impoluto juiz de Direito Dr. Hilson Bona, em que obtive nota máxima, disse, em pleno adolescer: “E agora direi, como disse Paulo Setúbal: 'Minha mãe, Deus lhe pague!'” Repito, agora, finalizando este singelo retrato, em plena maturidade: Minha mãe, Deus lhe pague.

(*) Republicada no ensejo do Dia das Mães, ocorrido ontem, dia 13.05.2018.

…............................................

Sobrevivem a minha mãe, o marido, Miguel Arcângelo de Deus Carvalho, e os filhos José Elmar, João José, Antônio José, Maria José, Paulo José, Joserita e Francisco José Nonato César (César), todos com o sobrenome “de Mélo Carvalho”. Minha irmã Josélia faleceu em 02/07/1978, aos 15 anos de idade. Meu pai veio a falecer em 05.11.2017.