Quando veio a Abolição da Escravatura, os negros caíram em festas e bebedeiras. Muitos foram levados para o centro do Rio de Janeiro, onde permaneceram completamente nus, bêbados, com as famílias destroçadas, urinando e defecando nas ruas da capital. Era o último ano do Império. Quando veio a República, eles já estavam morando em casebres, em lugares em que todo tipo de doença lhes pegava. Tentaram se empregar. Mas, mal vestidos, exalando cheiro de pinga barata – única forma de suportar a vida, e elemento que os viciou durante a escravidão – e descalços, eles não conseguiam ser ouvidos por nenhuma dona de casa. Ninguém mais os queriam como mão de obra. Os tais “imigrantes” estavam para chegar! Todos diziam.
 
Os imigrantes chegaram. Eram pobres. Mas estavam de terno e gravata. Não tinham o “cheiro de preto”. Pareciam que poderiam viver fora das senzalas, quase como humanos. Ao negros, nunca foi dada a condição de possíveis humanos. Então, o capitalismo brasileiro se integrou na narrativa do capitalismo internacional: trabalho assalariado para todos. Menos para os negros. Eles foram decretados, então, não os sem-trabalho, mas os vagabundos. Nasceu daí o preconceito. Ser negro passou a ser alguém que só poderia trabalhar a ferros; uma vez livre, entraria para a vida da bebida e da bandidagem. Diziam: “é de índole”. As negras, então, deixariam de lado a função de amas de leite pare enveredar pela prostituição barata, uma vez que a prostituição menos degradante era aquela não da sífilis, mas da simples gonorreia, transmitida pelas polacas.
 
Minha bisavó, aos 107 anos, gostava de me contar histórias da escravidão. Mas, aquelas que ela contava do negro livre, eram sempre as que mais revoltavam. Pois o negro livre parou de apanhar no pelourinho da praça para ser massacrado nas prisões das delegacias de todo o país. Ela lembra sempre da peregrinação do Negro José, um homem forte que por seis meses andou pela cidade de Nova Europa, no interior de São Paulo, tentando arrumar um terreno para carpir, sem sucesso. Foi então que ele, já à míngua, deitou-se na praça e foi preso por vagabundagem. Espancado na cadeia, José morreu de hemorragia interna. Durante a escravidão, durante mais de trinta anos, José havia sido o carregador de fezes da casa paroquial. Trazia para as fossas o cocô dos padres que, depois da escravidão, passaram a irem eles mesmos às fossas – “que degradante”, diziam, xingando a Imperatriz. Eles mesmos tinham de defecar, sem a ajuda dos pretos. Era horrível, diziam.
 
Os que negam hoje as cotas, e insistem em não criar uma política de integração étnica, para afastar o preconceito, são o agentes do cinismo. Procuram fingir que não sabem dessa história toda, de como o preconceito foi gerado, e insistem que no Brasil as cotas seriam um privilégio, uma odiosa marca no liberalismo, que garantiria a igualdade perante a lei. Ora bolas, alguém acha que negro é realmente igual perante a lei no Brasil? No Brasil, o próprio presidente da República, o tal de Bolsonaro, premia com honrarias seu guru que é visivelmente racista, que publica texto racistas. Como acreditar em liberais brasileiros?
 
Os liberais brasileiros deveriam por a mão na consciência e, também, nos melhores livros, ao virem com a conversa fiada da igualdade perante a lei. O preconceito só vai diminuir se o branco puder ver o negro, mais rapidamente do que temos conseguido fazer até agora, em cargos executivos, costumeiramente. As políticas de ações afirmativas são para isso, elas não são prêmios individuais ou políticas para dar diploma ou melhorar a renda do negro. Elas são políticas para baixar a bola do preconceito. Os liberais não querem entender isso por uma razão simples: Locke era um liberal escravocrata. Nosso neoliberalismo atual é escravocrata. Nosso liberalismo desconhece John Rawls ou John Dewey. Ele é o liberalismo de um Paulo Guedes, o liberalismo da escória intelectual do país.