Raimundo Carrero

Aula 01

Não é só de palavras que vive o romance. Sem visão do mundo, o autor desaba
 
Não resta dúvida que o ciúme é um dos temas mais trabalhados pelos escritores, em romances, novelas e contos. Basta observar, por exemplo, a obra de Graciliano Ramos – o assunto está em “Caetés”, em “Angústia”, e em “São Bernardo”. Machado de Assis ergueu um monumento ao ciúme em “Dom Casmurro”. Sem esquecer os casos clássicos de “Madame Bovary”, de Flaubert, e de “Ana Karenina”, de Tolstoi. Além de Eça de Queiroz, em “Os Maias”, sobretudo. E mais: “O ciúme”, de Alain Robbe-Grillet. Ciúme para vender em balaio. Na praça, no bar, no escurinho do cinema.
 
Mas não é apenas dele que pretendemos tratar aqui. Vai mais além, muito mais além. Especificamente, abordaremos o ponto de vista do escritor, a raiz e o centro de toda a preocupação intelectual, antes mesmo da técnica, que continua auxiliar. Ponto de vista é a visão que o romancista tem do mundo, a maneira como interpreta a condição humana, o modo de refletir. Portanto, o ciúme é um desses elementos. Um dos mais graves, concordamos, porque projeta toda uma série de incidentes. Mas, é claro, não é o único. É parte da visão do escritor. Lembrando Massaud Moisés, em “Dicionário de Termos Literários”:
 
“Porventura a mais estudada, porque a mais relevante, das categorias narrativas, o ponto de vista, além de condicionar a avaliação de um romance, articula-se estreitamente com o modo como o autor ou/e o narrador vê as coisas e o mundo: em grande parte, a comovisão de um escritor se manifesta por meio do ponto de vista, sobretudo na medida em que o ângulo visual determina, deforma ou informa, tudo o mais que se contém num texto narrativo. Exprime, assim, não só uma opção estética como também, e notadamente, ética: a obra literária dos últimos fins do ser humano evidencia-se na escolha do foco narrativo; conforme sejam vastas ou estreitas as condições éticas dum autor, assim será o ponto de vista empregado nas suas obras”.
 
Vamos aos casos clássicos de Flaubert e de Tolstoi. Ambos tratam do adultério, embora não haja ciúmes no exemplo clássico do escritor francês. Charles Bovary não sente ciúme nada nem mesmo quando descobre as cartas escritas por Ema aos amantes: Rodolfo e Léon. Em Tolstoi, o ciúme aflora com intensidade. Sim, mas embora os temas sejam os mesmos, o ponto de vista, de um e do outro difere, completamente. Senão vejamos: ambos veem o assunto de maneira bem diferente. Flaubert cuida da técnica, da estrutura interna da obra, e do medo da morte; Tolstoi examina a questão moral e, um pouco mais adiante, a religião. Dois grandes livros, dois tratamento desiguais.
 
Sempre lembrando que o ciúme é uma parte, até mesmo uma parte importante, do ponto de vista do leitor, mas reflete apenas uma particularidade.
 
No entanto, apesar de toda técnica e de todo discurso, ambos se unem no plano moral: as heroínas, Ema Bovary e Anna Karenina, são julgadas e condenadas. Suicidam-se. O que representa o ponto de vista dos autores, embora tão distintos e diferentes na montagem da obra. Em “Madame Bovary” há uma grande dor e um grande desespero, com a morte causada por veneno, uma morte que ocupa mais de uma página, cheia de barulhos, cânticos, arrependimentos metafóricos, choros, lamentações. Em “Ana Karenina” há uma espécie de alívio: moral e técnico; a personagem parece sair de um banho no instante em que se atira nas rodas de ferro do trem. Vejam o que escreve Tolstoi no momento exato do suicídio:
 
“Um sentimento toma conta dela, semelhante àquele de quando, ao tomar um banho, se preparava para um mergulho na água...”...”Colocou a cabeça entre os ombros e, com as mãos à frente, atirou-se embaixo do vagão.”
 
 A punição pelo alívio. Temas iguais para pontos de vista diferentes a respeito da morte.
 
Há, no entanto, uma grande confusão quando se trata das técnicas na obra de arte romanesca. Alguns estudiosos e críticos consideram que ponto de vista e foco narrativo são iguais, daí as expressões usadas por Massaud Moisés. No nosso entendimento, porém, ponto de vista é, como já dissemos, a visão de mundo do autor, a leitura do mundo, que pode ser filosófica, política ou religiosa, e o foco narrativa é a técnica que o autor usa para manifestar sua interpretação. Por isso, recorre a tantos personagens, a tantas histórias contraditórias entre si.
    
Quando escrevi “Viagem no ventre da baleia”, que examina a questão do campo, precisei, por isso mesmo, de três personagens que pudessem, juntos, refletir a minha angústia sobre o tema, mesmo através de um narrador inominado. Recorri a três personagens antagônicos: Padre Paulo, Jonas e Miguel. O primeiro procura equilibrar o mundo atribulado de Jonas e de Miguel, enquanto o segundo compreende que as questões universais são resolvidas através das armas, enquanto o terceiro acredita que a solução dos conflitos está no enfrentamento, embora de moído pacífico. Os três juntos revelam o meu ponto de vista e minha leitura do conflito. O mesmo fiz com Félix Gurgel, de “A dupla face do baralho”, com o personagem se debatendo entre a tortura e o amor.
 
Mais adiante, pode-se verificar o caso de Alain Robbe-Grillet, ou seja, o ponto de vista que aniquila o humano, não destacado, por exemplo, em “O ciúme”. Ali ele expõe seu ponto de vista existencial: “O mundo não é nem significativo nem absurdo. Ele é, simplesmente”. Aliás, na apresentação do livro na edição do “Círculo do Livro”, anota-se:
 
“Sua obra é notável principalmente pelo cuidado com que são eliminadas da narrativa as indicações que poderiam conduzir o romance a um resultado psicológico muito evidente. Robbe-Grillet aparentemente contenta-se em justapor descrições objetivas que traçam, pouco a pouco, diante do leitor, quadros concisos. As fisionomias os gestos que animam esses quadros parecem igualmente observados pelo autor de maneira fria, sem que lhes dê um significado mais amplo. Assim, aparentemente, todo o romance forma um único jogo de cenas. Graças a essa técnica, o escritor pretende sugerir a solidão metafísica de suas personagens”.
 
Percebemos, portanto, que a principal característica do autor é esse ponto de vista. O que acontece, então, é que a partir desse ponto de vista chega-se ao foco narrativo, que indica o caminho das técnicas. Os escritores que não sabem ter um ponto de vista e alcançam o foco narrativo de qualquer maneira podem ser bons, sem dúvida, mas correm o risco de repetir sem graça o que os outros já disseram. Ou escreveram. Dessa maneira, devemos estabelecer o seguinte: sem um foco narrativo, alimentado, pelo ponto de vista, o caminho do fracasso é linear: não tem errada. Mas se o escritor é capaz de, através de estudos sistemáticos, formam um ponto de vista, e escolhe as técnicas que melhor se ajustam ao que pretende dizer está, sim, percorrendo o caminho do êxito.
 
Nesse sentido, esses são os revolucionários, os que mudam o destino da literatura. Escrever bem não é, absoluto, apenas uma maneira de unir belas palavras. A linguagem escrita é um dos elementos da narrativa. Um dos mais importantes. Não há nenhuma dúvida disso. Mas os outros elementos não podem ser desprezados. Até porque para unir boas palavras, ajustáveis, é preciso saber para que elas servem. Não custa observar. Revolucionários e conservadores sabem disso.
 
O fundamental, porém, é que o escritor deve ter o que dizer, inicialmente, e não revelar isso no desenvolvimento da narrativa. Muito menos no discurso escrito. O desenvolvimento dos personagens, das cenas, dos cenários, dos diálogos, por exemplo, revelam o pensamento do autor, o seu ponto de vista, e não as palavras. Ou antes, não só as palavras.