Fac-simile das informações de genere do referido vigário
Fac-simile das informações de genere do referido vigário

Reginaldo Miranda[1]

A família patriarcal tem origem no império romano, onde o chefe tinha direito de vida e morte sobre todos os que viviam sob seu domínio, incluídos a esposa, filhos e escravos. Esse modelo foi preservado quase intacto nas ordenações do reino, que vigiam entre nós ao tempo da colônia e império. No Sertão de Dentro, a família patriarcal tinha base agrária, rural, latifundiária, pecuária e escravocrata. Nas relações familiares cabia ao chefe do clã o papel determinante, concentrando as decisões sobre bens e destino das pessoas. No entanto, embora teimem em minimizar o papel das mulheres, eram elas importantes na criação dos filhos, na manutenção das tradições, das crenças religiosas e auxiliavam o marido na escolha do destino dos filhos. Por essa razão, a situação pouco diferiu quando circunstâncias fortuitas a colocaram na chefia familiar. Segundo uma velha tradição brasileira, o primeiro filho ingressava na carreira militar e era destinado a herdar e administrar os bens paternos; ao segundo, cabia seguir a carreira eclesiástica, sendo motivo de orgulho e quase obrigação formar um padre. Dependendo das circunstâncias, os demais poderiam seguir o destino do primeiro ou prosseguir nos estudos em busca do pergaminho de bacharel ou médico. As famílias mais bem sucedidas eram aquelas que formavam o filho coronel, o filho padre e o filho doutor. No entanto, no caso piauiense, inicialmente todos os filhos eram destinados à atividade pecuária. Foi somente a partir de 1740, com a fundação do Seminário Episcopal de São Luís do Maranhão, por D. Fr. Manoel da Cruz, que a nossa aristocracia rural começou a enviar seus filhos para estudar naquele Seminário, muitos se tornando padres. Ainda não foi adequadamente analisado o saliente papel desempenhado por este Seminário de D. Fr. Manoel da Cruz na formação educacional e eclesiástica no norte do Brasil. Quanto ao filho doutor, continuou o problema por quase um século, porque até nossa separação do Reino de Portugal, somente meia dúzia de piauienses foram enviados para estudar na Universidade de Coimbra. Depois da fundação das Faculdades de Direito de Recife e São Paulo, apenas três dúzias de piauienses ali conquistaram o pergaminho de bacharel, quase todos no primeiro centro de ensino, apenas meia dúzia no segundo. Nas outras profissões, basicamente medicina e engenharia, apenas meia dúzia de piauienses formou-se ao tempo do Império. Assim, mesmo entre a elite rural piauiense foi restrita a formação superior, restringindo-se a imensa maioria de seus filhos no aprendizado básico de ler e escrever. Os menos favorecidos permaneciam no mais completo analfabetismo.

Por fim, muitos desses sacerdotes ingressaram na política, elegendo-se para a Assembleia Legislativa Provincial, raramente para a Assembleia Geral. Por seu turno, os bacharéis egressos de Olinda e, depois, do Recife, saltavam com mais facilidade da Assembleia Legislativa Provincial para a Assembleia Geral e para a presidência de províncias.

Entre os jovens piauienses que foram enviados para o Seminário Episcopal do Maranhão, está o gonçalino Manoel José Ribeiro Soares. Nascido na povoação de São Gonçalo de Amarante, situada onde hoje viceja a cidade de Regeneração, sendo naquela matriz batizado com poucos dias de nascido, em 15 de agosto de 1821, pelo padre Miguel Joaquim Barbosa. Foram seus padrinhos José Pereira e Maria de Jesus.

Era filho legítimo do major Gabriel Ribeiro Soares[2], negociante e de sua esposa Raimunda Maria da Silva[3], ambos naturais da mesma freguesia de São Gonçalo, onde foram moradores. Neto pelo costado paterno de Manoel Ribeiro Soares e de Mariana Teixeira da Encarnação, ambos naturais do vale do rio Piauí, na freguesia de Nossa Senhora da Vitória da cidade de Oeiras. Neto pelo costado materno de Pedro José Nunes, natural de Portugal, e de Ana Bernarda da Silva, natural da sobredita freguesia de São Gonçalo.

Iniciou seus estudos na povoação, depois vila de São Gonçalo, prosseguindo depois na cidade de Icó, da província do Ceará, para onde mudaram seus genitores, no exercício da atividade comercial.

Depois de seis anos de estudo, demonstrando pendores para servir a Deus e à Igreja, no estado sacerdotal, foi enviando para os estudos eclesiásticos no Seminário de São Luís do Maranhão. Aluno aplicado e inteligente, concluiu com êxito os seus estudos, de forma que, em 1843, requereu fossem colhidas suas informações de genere para ser admitido às ordens menores e sacras, até presbitério. Esse processo eclesiástico, que encontra-se arquivado na Arquidiocese do Maranhão, é a principal fonte para elaboração dessas notas. Consistia em investigação judicial e extrajudicial sobre o ordenando, seus pais e avós. É, pois, rica fonte de estudos sociais e históricos. Por exemplo, sendo ouvido em 27 de agosto de 1843, na cidade do Icó, disse o padre Leandro da Costa Cardoso, branco, 75 anos de idade, sacerdote secular do hábito de São Pedro, natural e morador naquela cidade:

“... que conhece o habilitando, que é natural da freguesia de São Gonçalo da província do Piauhi, Bispado do Maranhão, que morou nesta cidade de Nossa Senhora da Expectação do Icó, Bispado de Pernambuco, seis para sete anos, e de presente mora na cidade do Maranhão, e o conhece desde o seu nascimento, assim o depõe por ter ele testemunha morado naquela freguesia de São Gonçalo vizinho a seus pais, e depois vieram para esta cidade do Icó”;

“... que conhece os pais do habilitando, e que são negociantes desta cidade do Icó, que ambos são naturais da sobredita freguesia de São Gonçalo, seu pai é morador nesta cidade, e sua mãe falecida, que os conhece a muitos anos, e a razão que tem de os conhecer, porque ele testemunha morou alguns anos na freguesia de São Gonçalo, e de presente moram todos nesta cidade do Icó”;

“... que também conhece os avós paternos, que viveram de criar gados, que eram naturais da freguesia de Nossa Senhora da Vitória da cidade de Oeiras, Bispado do Maranhão, e que moraram em São Gonçalo, tempo em que ele testemunha também lá morou, e por isso teve deles grande conhecimento”;

“... disse mais, que também conheceu seus avós maternos, que viveram de criadores, seu avô natural de Portugal, sua avó natural da sobredita freguesia de São Gonçalo, e os conhece pela mesma razão acima expendida”;

“... que nem o habilitando, e nem seus antepassados cometeram crime, pelo qual sofressem penitência pública ou infamatória”.

As demais testemunhas ouvidas apenas repetem o que foi dito por aquele vigário. Entretanto, na assentada de 3 de janeiro de 1844, na cidade de Oeiras, acrescentou a testemunha Miguel de Sousa Rego, branco, casado, 54 anos de idade, natural e morador naquela cidade, onde vivia de seu ofício de sapateiro:

“... que conhece o habilitando Manoel Ribeiro Soares, que ele testemunha morou na vila de São Gonçalo, donde é o dito habilitando natural, sendo ali morador, achando-se presentemente no Maranhão, e que a muitos anos o conhece”;

“... que conhece os pais do habilitando, os quais são Gabriel Ribeiro Soares, e sua mulher Raimunda Maria da Silva, já falecida, tendo o primeiro servido de vereador da câmara da dita vila de São Gonçalo, vivendo ele de seus bens; que os mesmos são naturais e moradores naquela vila; e que a muitos nãos os conhece”[4].

Por fim, concluindo seus estudos eclesiásticos e sendo considerado habilitado, ordenou-se em 1844, assumindo o cargo de vigário colado da freguesia de Nossa Senhora do Desterro da vila Marvão, hoje cidade de Castelo do Piauí, onde desenvolveu profícua ação sacerdotal. Porém, os detalhes de seu trabalho apostolar nessa antiga freguesia das cabeceiras do rio Poti, ainda precisam ser mais bem detalhados com o exame dos livros de tombo paroquiais. Em 1848, era ali assinante do jornal O Constitucional[5].

Não tardou a inebriar-se pelo canto da sereia política, candidatando-se a deputado provincial nas eleições de 1848, quando alcançou uma suplência[6]. Pois, depois de algumas tentativas frustradas foi eleito para a legislatura iniciada em 1864, representando, assim, a sua freguesia no legislativo provincial.

Padecendo, porém de vários “sofrimentos físicos”, o padre Manoel José Ribeiro Soares foi “procurar remédio” “na capital do Maranhão. Contudo, não resistiu aos padecimentos, rendendo alma ao Criador em 15 de novembro de 1868, com apenas 47 anos de idade[7]. Deixou uma memória honrosa e sua família colateral residindo naquela freguesia. Ficam essas notas com lembrança de sua passagem terrena. Requiescat in pace.

 


[1] REGINALDO MIRANDA, advogado e escritor, membro da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. E-mail: [email protected]

[2] Falecido depois de 1844, na vila de Marvão, hoje cidade de Castelo do Piauí, onde processou-se o inventário.

[3] Falecida antes de 1843, na cidade Icó, província do Ceará. Entre os filhos: Pe. Manoel José Ribeiro Soares; José Ribeiro Soares, morador na vila de Marvão; Tte. Antônio Ribeiro Soares, morador entre a vila de Marvão e a cidade de Teresina; e a esposa de Manoel Clementino da Silva Costa, provavelmente a filha Maria, que foi batizada em 17.5.1718, na igreja matriz de S. Gonçalo (A Imprensa, 30.11.1870).

[4] Genere do ordinando Manoel José Ribeiro Soares. Câmara Eclesiástica. Maranhão: 1843.

[5] O Governista, 11.3.1848.

[6] O Governista, 4.3.1848.

[7] A Imprensa, 28.11.1868.