FOTO DE ALBERTO CESAR ARAUJO
FOTO DE ALBERTO CESAR ARAUJO

CHEGAMOS ao ponto deste caminho em que digo que, certa vez, eu me lembro bem que vi primeiro um risco preto entre as tábuas do chão. Era algo que passava como uma linha reta móvel preta. Um traço cinematográfico, contínuo. Depois se pareceu com minúscula cobra reta que se infiltrava entre as frestas da construção carcomida, algo que percorria o tempo, que atravessava o mundo, fluindo como se deslizasse para furar e vazar a terra. Aí então chegou a aparecer como um corpo maior, um corpo duro - um cabo, um rabo. Sim, aquilo era um rabo de rato.



 

TALVEZ que uma ratazana saísse dali diante de mim, de sua ratada. Talvez. Ratânia-do-Pará. Talvez um ratão, um rato enorme, como ratão-d’água, ratão do banhado, roendo, moendo sob a terra, corroendo a casca, mascando e carcomendo a crosta, consumindo, devorando por baixo de numa mastigação constante. Ou mais. Ou o dorso preto, ou cinza escuro, de quase 15 centímetros de rabo, couro, rabo-de-couro e arganaz, murídeo - e atrás vinham outros, catitas, ratinhos, e mais um rato preto, de pilosidade eriçada, um camundongo quase gordo, coró, toró, curuá, sauiá, e mais. E mais. E eram muito mais ratos vindo chegando entrando no barracão, imburucus, gabirus, dezenas, centenas, milhares - o Manixi estava sendo consumido por ratos, e não só de noite como a qualquer hora do mesmo dia.

 

Revelo que isso se passou naqueles anos, depois, em 1925. Quando presenciei o processo de decadência e morte do Manixi. Para tudo descrever do que então vi direi que os ratos, atrevidos, vorazes, famintos, se multiplicavam, agressivos. Todo o empenho de João Beleza, que administrava o espólio, toda a sua luta contra os ratos de nada adiantava, os ratos não desapareciam e aumentavam, dia a dia, não havia como salvar nada, nem quando conseguiu gatos, os gatos nada puderam fazer, acabaram mortos, os cadáveres dos gatos saqueados e comidos por ratos famintos, ávidos, múltiplos, como se fosse o Juízo Final.

(O AMANTE DAS AMAZONAS)