MARIA ESTELA GUEDES


Apresentação de A casa de ler no escuro, de Maria Azenha. Lisboa, Associação 25 de Abril, 7 de Outubro de 2016.

Muito bom, este livro de Maria Azenha é tecido em negativo e minimalista: parece que o universo cabe em um só verso. Ao entrarmos no campo semântico, o da pluralidade de interpretações que a obra de arte consente, podemos defrontar-nos com o máximo contido no mínimo: um pequeno livro tece uma rede de alusões ao século XXI, em diversas vertentes, entre as quais o retrato do indivíduo, da família, da sociedade, o papel representado pelos Estados, a situação apocalíptica em que se encontram países e nações e uma Europa que posa desnuda e morta.
São 33 rápidos poemas, o último com apenas duas linhas, últimas palavras que apelam para a maior desgraça humanitária da Europa nos nossos dias, fulcro de conflitos internacionais. Intitula-se “Migração” e é por esse final que principio:
Limparam nossos lábios com a poeira do deserto.
Cada um que sai leva as últimas palavras. 
Não significa o total de 33 poemas que precisemos de os dividir ou multiplicar para alcançarmos pela matemática alguma revelação mais substancial. Não, se aos 33 acrescentarmos o “Poema contínuo” da página 49, logo verificamos que a revelação não é de números, sim de nomes. Então, a nossa necessidade será a de acrescentar Herberto Helder a vários autores interpelados no livro. Ao contrário de Herberto, que fica na zona escura, sem o nome explicitado, como convém ao Poeta Obscuro, trazem o nome expresso Rainer Werner Fassbinder, realizador de As lágrimas Amargas de Petra von Kant, Jesus Cristo, Arthur Rimbaud, Pier Paolo Pasolini e também o pintor alemão Heinrich Hoffmann, conhecido pelas suas várias representações de Cristo, algumas das quais, se o não são, parecem ser fruto das técnicas do claro-escuro próprias da estética tenebrista.
Então temos, para começar, um lado escuro dos tempos, anunciado pela “Queda”, no poema inaugural, visualizada no poente: não é um anjo que cai, como logo o pensamento decide, e o segundo poema confirma em título, “O Anjo do desastre”, nem o mais rutilante de todos os corpos celestes, nem é do sujeito lírico a queda. O que cai é a matéria-prima da obra ao negro que Maria Azenha oferece à nossa sensibilidade neste pequeno livro. Cai então o poema, maior dos símbolos, visto que contém todas as suas criaturas, afetos e referências:
Cheguei há poucas horas.
Os sons do mundo são carvões acesos no meio do escuro.
Minha boca gizada a diamantes de sangue
rasga poentes com lenços negros de seda.
A linha do horizonte é uma águia vermelha.

O poema tomba. 
Tomba o poema, negativo, como um retrato antes de ir aos sais de revelação, na câmara escura, e tecido com nadas, ou seja, aquilo que é residual e se opõe ao sim, aquilo que recebe carga elétrica contrária à positiva. Capa a preto e branco, com predominância do negro, e muitos versos em referência à noite e cenários com pouca luz, deixam adivinhar uma oposição. Aliás, já o título, A casa de ler no escuro, é tenebrista. Porém as trevas só se concebem por contrastarem com o dia claro. Essa é a técnica, vinda da Maria Azenha pintora, que me leva a falar do tenebrismo, que conhecemos sobretudo de Caravaggio. Consiste ele em banhar em tintas escuras grandes superfícies da tela para fazer sobressair as carnações claras.
Podemos falar de Obra ao negro, título de Marguerite Yourcenar, que ela mesma explica da seguinte maneira:
«A fórmula A obra ao negro, que dá o título a este livro, designa, nos tratados alquímicos, a fase de separação e dissolução, que era, diz-se, a parte mais difícil da Grande Obra. É ainda discutível se uma tal expressão se aplicava a audaciosas experiências sobre a própria matéria, ou se significava simbolicamente as provações do espírito ao libertar-se de rotinas e ideias feitas. Significou, sem dúvida, uma coisa e outra, distinta ou simultaneamente.».
Não é fácil saber se o nigredo de Maria Azenha consiste em empreender audaciosas experiências sobre a própria matéria, como explica Marguerite Yourcenar, ou se significa simbolicamente as provações do espírito ao libertar-se de rotinas e ideias feitas. Nós somos continuamente confrontados com situações que nos obrigam à própria transformação, e n’A casa de ler o escuro há algumas, veremos as mais fortes e que nos tocam a todos.
Com obra ao negro e nigredo quero chamar a atenção para o que o escuro do livro ilumina, e não é por distração que atribuo luz às trevas. A palavra “nigredo” também faz parte do léxico dos alquimistas, é um sinónimo deobra ao negro, ao designar o primeiro estado da obra alquímica, a morte espiritual. Sucedem-lhe os estados albedo (purificação), citrinitas(despertar) e rubedo (iluminação). Os alquimistas acreditavam que no primeiro passo para alcançar a pedra filosofal, todos os ingredientes tinham de ser mesclados até formarem uma matéria preta.
Os que leram o livro já notaram que além da queda inicial aparecem várias situações catastróficas, entre elas a morte: seja a mulher que se suicida, seja o cadáver do homem que vai a enterrar, a morte física está presente, tal como a morte espiritual. Nesses casos, em que o sentimento apela para a rosa, enquanto símbolo do amor e da compaixão, surge uma dominante mística, ligada ao coração, que o Calvário exprime. Falo de rosas, mas o tema da morte, na sua dimensão espiritual, é de cravos que se ornamenta, e logo transportados na boca pelo “Anjo do desastre” do segundo poema. Para nós, portugueses, os cravos são as flores do 25 de Abril, e é na casa dos antigos capitães que nos encontramos. Entre parêntesis, uma informação biográfica: Maria Azenha e eu somos dos mais recentes sócios desta Casa e hoje estreamo-nos nela como tal. Referências à iminência de morte da revolução tinham de entrar connosco, não podiam ficar lá fora.
Os cravos também são ferros, usados para pregar Cristo na cruz, como sabemos da nossa cultura cristã. Para os alquimistas, toda a provação de Jesus até morrer no Calvário é entendida como obra ao negro.  É ele o grande morto, sem anular outras mortes, individuais, em massa e com intenção de genocídio, iniciáticas e criminais, passadas e presentes. Passadas e públicas foram as mortes nos campos de concentração, haja em vista Auschwitz, no poema “A noite da europa”, presentes são as dos desalojados pelas guerras e pela fome que migram para uma Europa que também se apaga. Apaga-se em “Lesbos”, por exemplo, nome de ilha duplamente simbólico, dos raros poemas, se não for o único no livro, em que cintila a palavra “esperança”, como farol na tela tenebrista. Tão nigredo como a morte de Cristo é então a morte do velho continente, personagem no poema intitulado “Europa”, em que o abismo por nós mesmos cavado é testável com fio de prumo:  
É uma estranha morta.
Os braços fazem de escuro.
O céu é sete vezes horto.
O chão,
um fio de prumo.

Uma gruta encostada ao seu ombro
navega dentro dum túmulo.

Chove desesperadamente.

Chove de novo. 
Porém há outros mortos, mais humanos, se bem que simbólicos do mesmo modo, suficientemente importantes para darem título à obra. Vejamos o poema “A casa de ler no escuro”, onde se ilumina o cadáver do homem:
O poema é um quarto escuro
onde sozinho entras.

Mais negro ainda é o aposento
onde habita o teu cadáver.

Que homem morreu? – é caso para perguntar. O Homo sapiens, certo indivíduo da espécie, ou o macho? O macho em geral, na sua expressão machista, é um dos flagelos que subsistem num tempo em que a sobrevivência da espécie, abençoada pela Bíblia com o imperativo “Crescei e multiplicai-vos”, deixou de exigir a procriação. Hoje dispomos de técnicas para nos multiplicarmos sem necessidade de ato sexual. Uma vez postas em prática no futuro, de um lado deixa de se justificar a educação para o machismo, de outro libertam-se as energias sexuais para o amor, o prazer, o convívio social e outras finalidades de um mundo agora de ficção científica de que nem suspeitamos.
Retrato tenebrista do mundo e da Europa num século XXI que se esperava civilizado, de grandes progressos humanitários e espirituais e não apenas progresso tecnológico, A casa de ler no escuro é a câmara escura em que a autora vai decifrando os sinais do presente que anunciam um futuro francamente tenebroso. Então não há esperança? – perguntamos. Sim, há esperança, tinha que haver, numa autora dedicada às causas sociais e humanitárias, membro de uma fraternidade que se faz simbolizar pela cruz e pela rosa.
No meio das trevas reluz uma esmeralda, a pedra da esperança, sim. Só uma, é uma única vez que a palavra “esperança” está escrita, mas chega para iluminar a casa. Encontramo-la num lugar paradoxal, onde hoje correm lágrimas, a morte e a fome pairam, devido à deslocação forçada dos migrantes, mas que antes era símbolo de uma delicada poesia. Intitula-se “Lesbos” o poema. Acredito que a esperança que nele rebrilha é a única arma capaz de vencer a catástrofe da família, do desgoverno, da violência, da guerra e da pobreza: o amor, a compaixão dos que praticam a misericórdia.
Estremecem
sob a angústia pesada
das pedras.

Sentem calafrios e
secam as sombras de sangue
no chão.

Com olhos de veludo negro
a mão humana
enxuga-os com o ouro do sol
e com os óleos santos de
crianças derrubadas.

Nos confins da terra,
passos
recomeçam,
sem balanço nem piedade,
a marcha da esperança. 
Não será a política a dar luz à pintura tenebrista da ilha, antes o seu passado sáfico. É como vejo a marcha da esperança: reivindicação pelo direito ao amor, ciência de que a fraternidade é o que nos resta para salvar.

MARIA AZENHAA casa de ler no escuro
Editora Urutau, Brasil, 2016