capa
capa

Via aquática, monótona, através dos verdes meandros da mata submersa, a marcha prosseguia.

 

Era a segunda expedição de Benito Botelho em busca de informações a respeito do desaparecimento do jovem Bataillon. Há vários dias a paisagem era a mesma. O som do motor, ritmado pela fumaça da chaminé sobre o ar limpo, o calor úmido e a copa das árvores, arriadas pelo sol pesado e fone, o chão liquido filtrado pelos raios através do verde escuro, as minúcias de luzes em redes de cobertura fofa, arriscada, acamada de folhas secas como patê silvestre, pavê molhado, folheado, cremoso, marrom, onde se deitavam flores selvagens - sim, aquilo era o Igarapé do Inferno re-visitado, depois de tanto tempo, invadido, muito além do ponto de onde a expedição anterior tinha chegado. O Igarapé do Inferno, embora fundo - um navio de bom calado podia navegar - era uma armadilha, camuflada, estreita, em que tinham entrado desde o Igarapé Bom Jardim. Uma ilha engastada na foz fechava-o por dentro. Escondia a mata molhada, literária. Um observador de bom olho não o veria, por trás da glorificação daquele esplendor vegetal. A lancha, que se chamava Solar, penetrava-o como lâmina de faca, sincopada e intrusa, comprida, naquele parque aquático de gigantes antigos, insatisfeitos por serem incomodados, dignos, altaneiros. Era o rumo ignoto, inominável, distante, da paragem dos seres mágicos Numas. Dir-se-ia que as estruturas arcaicas do mundo estavam escondidas ali, que lá o mundo terminava, nos seus desconhecidos motivos.

 

Havia trinta anos ninguém navegava naquelas águas. Benito e seus homens poderiam ter passado pelo furo do Embira, desde Tarauacá. Mas, vindo assim, através do Rio Jordão, a viagem poderia tocar na pele secreta da fera que tinham necessidade de encontrar e surpreender a qualquer momento, depois de qualquer curva, como se aquilo fosse um monstro pré-histórico. A Solar era um lancha típica da Amazônia, oito metros de comprimento, parte central fechada, banco do timoneiro debaixo da cobertura da proa, janelas, beliches, motor de centro, latões de combustível debaixo de bancos sujos de graxa. As voltas eram intermináveis. Benito não se lembrava do lugar onde passara a infância. A região estava abandonada e entregue ao domínio Numa, que baixaram das montanhas peruanas. Centenas de pessoas haviam morrido naquelas matas cheias de seringueiras. Centenas de pessoas atravessadas por dardos venenosos de penas de guará vermelho. Aquilo era o esconderijo final da face da terra a civilizar.

 

Sentado sobre a escotilha, com o rifle municiado nos joelhos, o pesado Winchester 92, calibre 44, Benito era um homem aparentemente feliz. Criado em biblioteca, complexão frágil, aquela viagem o reanimava, o excitava.