Mercado Público Dermeval Mendes da Rocha, Bertolínia - PI (Foto: Rubens Saraiva)
Mercado Público Dermeval Mendes da Rocha, Bertolínia - PI (Foto: Rubens Saraiva)

Reginaldo Miranda[1]

 

               Chamava-se Sebastião, não me recordando o sobrenome, sendo conhecido por Sebastião “Chacho”. Baixo, de tez escura, cabelo ondulado e os traços finos, falava ligeirinho com a língua apregada nos dentes, o que dava a impressão de ser levemente aparvalhado. Lembro-me dele na década de setenta, na minha cidade de Bertolínia, em cujos arredores morava, trajando invariavelmente calça escura com camisa branca de mangas compridas e sapato preto do “bico de pato”. Caminhava apressadinho segurando à mão do filho que choutava para acompanhá-lo, chupando o dedo polegar da outra mão. Era este um garoto de uns sete ou oito anos, mais ou menos da minha idade, de tez escura e cabelo duro, cuja maior vantagem que achava era chupar o dedo. Uma vez ou outra apareciam os dois para visitarem uns parentes que moravam vizinhos à minha casa, oportunidade em que os via. A esposa, Eva, conhecida por “Eva do Sebastião Chacho”, nunca os acompanhava, permanecendo em casa, na localidade “Recanto”, em sua lida doméstica. É assim que guardo, ainda do tempo do menino, a lembrança dessa gente.

            Por esse tempo corria na cidade um fato interessante com referência ao seu casamento, ocorrido na década de cinquenta, no cartório de registro civil da comarca de Bertolínia, perante o juiz de Direito recém-formado, Dr. Alair Rocha, conhecido como um magistrado de postura grave e circunspecta. Pois bem, na hora marcada para o matrimônio, já próxima ao meio-dia, a pequena sala estava lotada pelos diversos parentes e vizinhos que há pouco haviam para ali se dirigido em procissão com os noivos, soltando foguetes pelo caminho. Na passagem pelo mercado, a noiva ficara esperando à praça com os convidados, e o noivo acompanhado de uma delegação de três companheiros fora até o boteco mais próximo e tomara uma doze de aguardente, a fim de quebrar a timidez.  Não é demais esclarecer que não existia fórum na comarca e o cartório de registro civil ficava na praça da matriz, logo acima da praça do mercado. Então, a expectativa era grande com alguns convidados dentro do recinto e muitos por fora, na calçada, tomando as duas portas e a única janela. À frente dos convidados postavam-se os noivos, vestidos a caráter para a ocasião, com as mãos dadas e o suor descendo pelo corpo em razão do calor causticante. E à frente de todos, em sentido contrário, punha-se o juiz em elegante terno, tendo a seu lado a oficial do registro civil, Maridilva Mendes da Rocha. Então, inicia-se a cerimônia, dizendo o juiz dos motivos daquele encontro, ao qual todos já sabiam mas era necessário que se dissesse e da importância do matrimônio na constituição da família. Em seguida a oficial do registro civil é instada a lavrar o assento no livro competente e lê-lo aos presentes. Então, após a lavratura, começa a ler: “Sebastião de tal, nascido em tanto de tanto, residente e domiciliado no lugar tal, brasileiro, lavrador, solteiro, ...”, e por aí vai. E passa-se à noiva, lendo-lhe as qualificadoras. Entretanto, para surpresa geral quando a oficial dissera ser a noiva, até então de estado civil solteira, a coisa quase desandara.  Sebastião “Chacho”, desoladamente caiu das carnes, como se dizia, e entre triste, surpreso e decepcionado, virou-se timidamente para noiva, sem mexer o corpo gelado, apenas girando a cabeça sobre os ombros, para exclamar:

               - Vixe, eu não sabia disso!

               Incontinenti, a noiva, desvencilhando sua mão da do noivo, dá um pulo para trás e com o dedo em riste protesta ao juiz:

               - Solteira não “dotô”, eu sou pobre mas não sou solteira!

             Então foi um “Deus nos acuda” só acalmado instantes depois, quando o magistrado conseguiu explicar aos nubentes e familiares o que significava para a Lei, ser uma moça solteira. Dito bem, apenas para a Lei, porque para o povo ali presente essa Lei era muito da estranha, uma vez que “moça solteira”, como todo mundo sabia, era coisa muito “deferente”. Quando se dizia que “a filha de fulano ficou solteira”, era o mesmo que dizer que “caíra na vida”. Porém, explicado mas não bem entendido, a cerimônia matrimonial foi concluída, e entre mortos e feridos salvaram-se todos. Sebastião e Eva viveram felizes até que a morte cruel levou o primeiro. A viúva ainda sobrevive, residindo em Uruçuí. E para o todo e sempre é que registro essas linhas. Ad perpetuam rei memorian.

 

(Publicado no jornal “Diário do Povo”, Edição de 17.04.2001).

 

 


[1] REGINALDO MIRANDA, advogado e escritor, membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI. Contato: [email protected]