Capa do livro "Velas náufragas". Registro fotográfico de Jairo Leocádio na Praia da Pedra do Sal, na Parnaíba, no litoral do Piauí
Capa do livro "Velas náufragas". Registro fotográfico de Jairo Leocádio na Praia da Pedra do Sal, na Parnaíba, no litoral do Piauí

Trecho sobre "Velas náufragas", extraído do longo e conceitual estudo acadêmico do Doutor João Carlos de Carvalho:

 

Em outro livro, um tributo a suas raízes telúricas e marítimas, de uma Parnaíba, ou Altaíba, vibrante em sua memória poética, com suas praias, siris, veleiros, que se misturam a memórias de amigos, familiares, vivos ou mortos; um livro que procura avidamente preencher os vácuos e questões levantadas anteriormente com uma profusão de signos extraordinária. No entanto, mais uma vez, sua arte reaviva, em diversos momentos, a exaustão no caminho, do percurso que fascina e se esvazia pela necessidade do próprio percurso: “Sombras da noite incompleta/onde o meu coração/morreu vivo” (2019d, p.14). O paradoxo é a senha que torna possível a maldição de sua sina poética e também um diálogo quase sempre pela metade, entre a memória e a forma, que se incendeia na forja do desânimo. Mais adiante, o Eu lírico se queda diante da constatação de seus limites de soberba do abatimento: “Siris, alma da minha alma, direção indiscreta/ do meu dedilhar derrotado// Só vagando no silêncio, /os meus siris e eu, / em suprema tristeza...” (2019d, p. 15). A curva ou o cálculo, em versos que se estendem e se contêm ainda no invólucro de dispersão, não nos deixa dúvida em relação ao que inquieta o Eu lírico: a batalha que trava com suas raízes é uma batalha com o nada, uma atração indefectível ao desejo de não desejar. O estado de espírito, superlativado, apenas traduz a impotência de relação entre o criador e a forja. Ou entre a vida propriamente e a vida redescoberta e abandonada às lembranças, pois já não há distinções possíveis em uma lírica que se quer mais e mais radical, procurando remexer as entranhas de uma memória impossível.

Há, por outro lado, um esforço de autodidata dos próprios escombros deixados pelo percurso através de uma memória que se incendeia com brilhos e se fustiga em rastros e rastros de impedimentos: “Não havia outra face somente a sombra/ da morte e o meu inglorioso disfarce” (2019, p. 17). Sua adesão ao simulacro é sempre um compartilhamento calculado de riscos entre abstratos. O Eu lírico sabe que não pode ser mais do que enunciação do seu próprio poema que, no fundo, não ensina nada no seu percurso autodidata, pois, aqui, sua nostalgia já não sabe bem como nomear o objeto. Vejamos como isso se agudiza quando os referentes parecem ganhar um corpo visível para um possível leitor sequioso por paisagens e descrições, no poema “Porto do Igaraçu”:

 

Quando franceses, ingleses, americanos, alemães,

espanhóis, portugueses e fenícios e persas –

estes donos da Pasárgada do Manuel

Bandeira – eram pertinências

nas águas de Altaíba, cidade imaginária

avidamente poética e linda

que eu quis só pra mim

 

Ave do destino latente

do desejo

(2019d, p. 47)

 

Todos os indicativos factíveis são embustes prosaicos para se chegar a Altaíba, na curva da verdade, uma utopia nomeada que transaciona, sugestivamente, com a Pasárgada do famoso poeta pernambucano. Sua utopia é um engaste à fragilidade da própria chegada (ave do destino latente do desejo), por meio de um incêndio de percurso, perdido no próprio desastre de ter existido e se feito poeta com o intuito de misturar memórias, quando todas as nomeações são precárias, mesmo as mais aparentemente factíveis. Altair/Parnaíba = Altaíba é o impossível que o poeta enfeita na sua avidez de imagens falso-terapêuticas, a concorrer com a história, a geografia física, a literatura, enfim, a reforçar a estrutura para a caminhada ao, agora, vag(c)ante.  Seu percurso é tão somente enunciação ao nada (desejo de não desejar), à sobrevida de uma existência a se forjar na precariedade das reminiscências. Altaíba é o paraíso ansiado, por isso lugar nenhum, por meio de uma ânsia de permanência utópica (ou o não lugar), que acena para o antes do contágio poético, como vimos em poemas anteriores. O Eu lírico se afoga nas próprias águas que desenham garatujas em seu imaginário sedento por mais e mais imagens que force a retrabalhar o estímulo original, para manter o circuito no próprio abstrato, apesar do apelo concreto de sua terra natal, como em “Paragens do mundo emerso”, rico em elementos regionais:

 

Dos caranguejos

e dos siris

migram

quebra-mares

quedas-d’água

que não versam

outros desejos

somente fainas

do temível

porque o que está à vista

é paragem de um universo

minuciosamente

desprezível

(2019d, p. 67)  

 

Nesses versos, onde a dispersão é ainda mais evidente, o trabalho poético, uma “faina” exaustiva, claro, é na verdade um esforço de desconstrução do referente, por isso desdenhador e integrador da origem, concomitantemente. São versos ferozes que se voltam contra os próprios elementos motivadores do estado poético (paragem de um universo minuciosamente desprezível). Siris e caranguejos existem como molduras (não versam outros desejos), apesar de serem referências fundamentais na composição de sua Altaíba, a essa altura. A geografia porosa da poesia de Diego Mendes Sousa é ávida por imagens redentoras, mas que solucionam apenas o que já estava remediado pela própria antecipação da imagem, na relação com o referente: “Revoada dos Guarás no Parnaíba/Armadilhas na claridade solar do Parnaíba!” (2019d, p. 81). Do rio à cidade, tudo é disperso e poético, porque criou a consciência do risco. Ele planta os alimentos do espírito e sabe o terreno pantanoso em que pisa, perigosamente, sendo seduzido ao confronto com os fragmentos que ele mesmo espalha. A memória pede para ser retrabalhada até à exaustão. Mas o estado poético é mortal. Fronteira tênue entre mundos que precisam ser partilhados de alguma maneira, como em um outro poema: “Magia/que ousaria/tornar real/para que/o avanço/das areias/finíssimas/tardassem/a dividir/dois países/litorâneos” (2019d, p. 69). O desejo de se plantar em sua utopia, seja Parnaíba ou Altaíba, ou mesmo Maringá, torna-se o grande elemento motivador além dos motivos iniciais do colorido de sua região litorânea e o transe poético, sempre paradoxalmente perturbador, pois é o único passaporte para a sua afirmação de vida, no entanto, vida forjada, como já sabemos. Em “Ilhas de paus”, seu trânsito (ou transe), de um ponto a outro, possibilita que nos detenhamos em uma imagem revigorante do seu estado de esvaziamento: “De náufrago/à terra natalícia/onde perdi o marejar/dos olhos vagidos/de dor/mirada de crustáceo/à alerta/no afluxo das marés” (2019d, p. 93). Sobra-lhe sempre um aceno que poderia ser reinventado no próprio desejo da enunciação. O que não deixa de ser um outro estado em sua poesia paradoxal, já que a perda, aqui, é tão desejada como a própria imagem advinda dela.

 

Estudo de João Carlos de Carvalho, doutor em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É poeta, contista, romancista e ensaísta. Professor Titular da Universidade Federal do Acre (UFAC) há 28 anos.

 

 

Fonte:

 

SOUSA, D. M. Gravidade das xananas. Guaratinguetá: Penalux, 2019a. 60 p.

 

___. Tinteiros da casa e do coração desertos. Guaratinguetá: Penalux, 2019b. 98 p.

 

___. O viajor de Altaíba. Guaratinguetá: Penalux, 2019c. 99 p.

 

___. Velas náufragas. Guaratinguetá: Penalux, 2019d. 99 p.

 

___. Fanais dos verdes luzeiros. Guaratinguetá: Penalux, 2019e. 89 p.