O Escritor e suas escritas
Por Herasmo Braga Em: 30/10/2025, às 21H47
                                    O Escritor e suas escritas
Herasmo Braga
Professor e Ensaísta
No mundo narcísico que marca a contemporaneidade, o anseio por projetar-se é praticamente uma obsessão. Seja através de imagens espetacularizantes, notícias potencializadas de egocentrismos, autodenominações profissionais diferenciadas ou posturas autorais de filmes, músicas e livros. Diante desse cenário, não é inverídico destacar um dos grandes fetiches hodiernos, a titulação de escritor. Todavia, pouco ou nada se reflete sobre os caminhos formativos de um, menos ainda, algumas das significativas relações entre o pretenso autor e sua escrita.
Ser mentor de um livro parece valer mais do que ser celebridade em outros campos artísticos. Imaginar-se em feiras de livros com filas para sessões de autógrafos, ter o livro como pretexto para falar de si mesmo em meio a diversas pessoas que pagaram para ouvi-lo(la) e ficarem vidrados de admiração, anotando tudo como se cada manifestação do seu ego autoral fosse algo supremo, de uma mente privilegiada, diferenciada. Dar entrevistas para jornais, revistas e televisão, expondo-se como modelo e vendo quão supremo você é, constitui alguns dos delírios corriqueiros de pensamentos limitados que buscam incessantemente esses acontecimentos. Fora as glórias alçadas pelas premiações consagradoras dos concursos literários, por exemplo. Interessante que todo esse processo se dá por meio da desconsideração do ofício da leitura. Concebe-se escritor na ausência delas e, consequentemente, das experiências relevantes para serem expressas e compartilhadas. Fazer-se, portanto, autor célebre na ausência do leitor operário e vivido.
Deixando de lado esses ignaros autores célebres, não merecedores mais do que um parágrafo de apresentação contextualizadora, parte-se para algo mais agregador, que é a reflexão entre aqueles a se constituírem, como deve ser, primeiro como qualificado leitor e ao longo do tempo fora levado pelos textos e pela ampla imaginação a desenvolver a natural necessidade do compartilhar com outras pessoas e assim tornar-se autor(a). Em meio a esses e suas trajetórias, há pontos significativos, dignos de atenção na relação entre o autor e sua escrita. Nesse sentido, pode-se mencionar Ítalo Calvino, que em uma das suas últimas escritas apresentadas em conferências e reunidas no livro Seis propostas para o próximo milênio, evidencia algo muito maior e até mais significativo do que o livro pronto e publicado com sucesso: o processo de feitura dele. Expõe Calvino, na conferência sobre Exatidão, tendo por base algumas considerações relacionadas a Leonardo da Vinci e o grande poeta Francis Ponge: “[...] a procura da expressão mais rica, mais sutil e precisa. As várias fases do tratamento de uma ideia, que Francis Ponge acaba publicando uma em seguida a outra – pois que a obra verdadeira consiste não em sua forma definitiva, mas na série de aproximações para atingi-la – são para o Leonardo escritor a prova do investimento de força que ele punha na escrita como instrumento cognitivo, e do fato que – de todos os livros a que se propunha escrever – lhe interessava mais o processo de pesquisa que a realização de um texto a publicar”. Essa a postura na qual Calvino não só concordava como se inseria no procedimento. Destarte, a validação maior no tocante ao livro é mais intensa e ao mesmo tempo constitutiva quando a vivência das leituras, articulações, pesquisas, descobertas, reflexões, pensamentos para se pôr em ordem, todos esses percursos são mais fecundos e interessantes do que apenas a concretude do produto no livro. Não é à toa que todo grande autor anseia por começar outra jornada de escritura assim que se aparta dele (do livro) e o torna público. Sem, no entanto, ter a pressa de logo concluir o percurso, já que toda a aprendizagem formativa terá mais valor ao longo de toda a vida.
Somente os produtivistas, focados apenas nas partes secundárias do processo, como mencionado no início deste texto, poderiam considerar tal concepção ingênua. De fato, para muitas pessoas, porque aderentes ao mundo líquido, não se poderia pensar diferente. Algo só será considerado se tiver cifra e ela só se fará presente no produto, no consumo, na exposição, na centralidade do ego, na postura narcísica soberana. Seria, portanto, tão mais estranho, aos olhos do sujeito ordinário quando, nessa mesma conferência, outro momento reflexivo sobre a sua relação com a escrita, evidenciará Calvino: “Em vez de lhes contar como escrevi aquilo que escrevi, talvez fosse mais interessante falar dos problemas que ainda não resolvi, que não sei como resolver e que tipo de coisa eles me levarão a escrever... Às vezes procuro concentrar-me na história que gostaria de escrever e me dou conta de que aquilo que me interessa é uma outra coisa diferente, ou seja, não uma coisa determinada, mas tudo o que fica excluído daquilo que deveria escrever: a relação entre esse argumento determinado e todas as suas variantes e alternativas possíveis, todos os acontecimentos que o tempo e o espaço possam conter”. Mais uma vez, o foco centra-se na escuta do processo. Esboçar as linhas a serem traçadas não pelo já consolidado, e sim, por aquilo ainda incompleto, não resolvido, não compreendido. Lançar-se por outras trilhas, para que as inquietações sejam atendidas e a aprendizagem do novo ou do ressignificado possa ocorrer. Sem pressa, sem perdas, sem ânsia de logo resolver e aquele momento ser concluído. Terry Eagleton em O acontecimento da Literatura, ressalta que “[...] a literatura é a descrição ‘mais densa’ da realidade que temos”; destarte, sentir, captar e reelaborar novos sentidos em torno dessa jornada não será por meio de ato mecânico, apenas pela junção de palavras disponibilizadas em uma página em branco.
Na mesma toada, Ítalo Calvino, na conferência acerca da Leveza, destaca: “No universo infinito da literatura sempre se abrem outros caminhos a explorar, novíssimos ou bem antigos, estilos e formas que podem mudar nossa imagem do mundo [...]”. Isso ocorre porque o fazer literário, sentindo-o em suas entranhas, apresentado nas escritas condensadas em consideráveis narrativas, marcado por fortes sentimentos vivos e atuantes em meio às linhas desenvolvidas, promove a expansão do sujeito e aprofunda seu conhecimento acerca do mundo, guiado pela ação da compreensão que deverá ser entendida não na mera questão limitadora do conceito, mas no entendimento, como advoga Paul Ricoeur em O conflito das interpretações: “Compreender não é mais, então, um modo de conhecimento, mas um modo de ser, o modo desse ser que existe compreendendo”. Essa ação expansiva é a base formuladora das produções literárias que, primeiro, dirige-se a quem alimenta o “espírito”, depois, a mente, em consonância com os contatos reformuladores com o mundo, desbrava o novo sentir em si mesmo e após a alegria das infinitas aprendizagens e da compreensão do ser aqui e o do ser aí no mundo é que perceberá que o final será apenas mais um começo; o término de um livro é só mais um passo na direção constitutiva do indivíduo por meio dos seus escritos, que o tornará um escritor de vida e de presença para as demais pessoas.

                                                        