O difícil ato de votar

                                                                       

                                                                        Cunha e Silva Filho

                     Já percebeu o eleitor/a o quanto é difícil a decisão de fazer, na última  hora de votar num candidato e não em outro. O voto, que é secreto e intransferível, possui algo de confissão perante  aquele que nos ouve e não pode, por obrigação  do ofício,  transmiti-lo a outrem. Só que no voto estamos   perante uma  urna eletrônica, separado dos mesários por uma espécie de  biombo ou anteparo, como a sinalizar um ritual selado contra a  invasão de nossos pensamentos inconfessáveis,  íntimos, e não diante de um padre  ou pastor ou seja lá o que for  aquele que nos  ouve em segredo e em surdina. Dificílima, pois, a  ação de votar, porquanto o mais das vezes ela deixa atrás de si muitas interrogações, dúvidas  e incertezas, quem sabe, até sentimento de culpa, traição  ou mesmo pecado.

Após havermos  assistido a alguns debates, no meu caso, a dois debates pela TV, persiste no  nosso espírito um vago sentimento de frustração  ante o desconhecido e o imponderável criados pela  nossa expectativa vacilante entre  a escolha a ser feita e que  não tem  volta, uma vez que  a tenhamos concretizado ao apertar os botões correspondentes a dois  dígitos e ao ato quase simultâneo   de apertar do botão da confirmação.  Consummatum est!

          Observe o leitor ou leitora que não estou até então falando da opção pelo voto nulo, que tem outros ingredientes no julgamento do eleitor ou eleitora de candidatos.

         O ato de votar faz vir à tona todo esse mal-estar produzido por anos e anos de decepções individuais e coletivas acumuladas e que, por vezes, chegam à exaustão.

          Votar em alguém equivale a um ato de discernimento ou a um pulo no escuro e, no  exemplo da política brasileira, se torna ainda mais complicado porquanto  há uma distância  bem grande entre a apresentação de planos de governo e a sua  concretização  durante a performance administrativa do candidato  eleito, sobretudo se este se está elegendo pela primeira vez e para aquele  mandato específico.

A corrida a um posto eletivo pressupõe um conjunto  de componentes oriundos de diversos meios da realidade social que fazem com que a “sociedade de espetáculos” transforme  aquela  realidade empírica num simulacro e é  partir  deste  que a polifonia das massas assume suas identidades ou suas aversões no  que tange a escolhas de candidatos.Sempre me pareceu que anular o voto nos deixa mais vulnerável ao desapontamento,  como a querer significar uma ausência  ou amolecimento  de vontade  própria, ou o despertar do sentimento de anarquia ou de emmersoniana  desobediência civil com  que o cidadão  faz valer sua vontade própria. Por isso,  no íntimo do meu ser  não nutro nenhuma simpatia pela anulação do voto, não obstante  não  nego já tenha  passado  pela minha cabeça  algumas vezes ou ocasiões  de ser favorável à  anulação do voto como protesto e sinal de ceticismo pela  política que se vê em nosso país.

É  óbvio que muitas vezes nos rebelamos diante da falta de opção  pelos candidatos e aí nos vem aquele   desejo incoercível já mencionado  de sermos  anárquicos, ou seja, de não sentirmos nenhuma disposição de votar, transformando  essa má vontade  num libelo contra o lado sujo e enlameado desse circo de horrores morais em  que têm chafurdado as piores espécies de políticos. São essas visões que nos assaltam até ao último instante quando daremos o passo final da escolha da  nossa escolha.

O eleitor menos  qualificado culturalmente constitui uma presa  mais fácil da mistificação  embutida nesses ingredientes da “sociedade de espetáculos”.  Creio que hoje a mídia mais poderosa de que dispõe a sociedade, porque atinge escala  planetária,  seja mais, além da televisiva, a das redes sociais, mídia na qual  se incrustam outras mídias de forma virtual, associadas à publicidade e às várias formas de produzir  subliminarmente no  espírito dos telespectadores  “realidades “aparentemente” convincentes e que levam os incautos  ou  os ingênuos  a pensamentos  de natureza manipulatória, tal a força da imagem,  do som, palavra e dos enquadramentos  técnicos escamoteadores  da verdade, e, o que é pior, dirigidos à variedade de segmentos  sócio-econômico-culturais.

A indiferenciação da cor partidária, aliada às chamadas adesões múltiplas de siglas de partidos verdadeiros sacos de gatos -, concorre sobremaneira para aquele ato mistificatório, dificultando as opções individuais de exercerem a genuína  consciência crítico-reflexiva e de manifestarem  a autonomia de pensar por vontade própria.  Tudo isso  acontece   com a cumplicidade do faz de conta do establishment que, mal ou bem, se mantém e dá continuidade e relativa solidez às instituições criadas pelo Estado.Estimular, por conseguinte, o voto  obrigatório e ao mesmo tempo glamourizando-o de uma aura  de ética e de dignidade  da obrigação  cívica,  robustece a perpetuação das estruturas vigentes.

     É preciso  revestir os simulacros  de uma ritualística com  reverberações que vão   do culto  à obediência,  à  valoração da  ação praticada pelo instrumento do voto. O voto  obrigatório  não deixa de ser um ato  autoritário, ao impedir o indivíduo  de exercer sua vontade de  praticar ou não uma ação.  Cumpre, assim, incutir nos espíritos essas práticas que,  pela  reprodução das ações ritualísticas, se transformam em atitudes , agora,  não de atos compulsórios, mas de ações patrióticas, dignas de serem imitadas por todos, até pelos que  extrapolaram os limites de idade  estabelecida  por  lei.

       Aí residem as poderosas forças das chamadas democracias, que fazem a festa e as alegrias docs políticos brasileiros. Ao eleitor  rebelde só resta abrir um certo livro de José Saramgo e contentar-se, agora, com  a força e o sortilégio do imaginário.