[Galeno Amorim]


Nunca se soube se ele sabia ler e escrever. Ou de onde viera e se tinha família. Sobre seu passado mesmo, não dizia uma só palavra. O certo é que era um homem de bem. Mais que isso: em sua simplicidade, era um filósofo de verdade. E contava histórias como ninguém... 

O velho Francisco dominava algumas artes. Uma delas era a arte de brincar com as palavras. Não as escritas, mas as faladas. Ele burilava com elas. E dava vida e certo sentido a cada uma delas. A outra era dar uma nova vida às coisas. Era o que fazia com as latas velhas, que chegavam aos montes à Casa de Saúde Allan Kardec. Era lá onde ele vivia, por obra e graça da caridade alheia.

Com paciência e sabedoria dos velhos, ele que descendia de negros escravos tirava delas todo tipo de excesso. Limava-as com esmero - como fazia com as palavras. Com cuidado, preparava-lhe as bordas, que era pra ninguém se ferir quando as levasse aos lábios - como, enfim, fazia com as palavras. 

Por fim, untava um cabo de madeira, dando, finalmente, a elas, agora transformadas em canecas, uma surpreendente utilidade. E um sentido novo. 

Seu Chico fazia uma e outra coisa ao mesmo tempo. Com gosto. E a mesma alegria e obstinação. Como uma doce tarefa de vida. Tal era seu talento que, ao cabo de instantes, já havia operado o milagre moderno de transformar pequenos e acanhados ouvintes em futuros leitores. Mas disso, ele nem sequer desconfiava. Porque fazia o que fazia com naturalidade. Afinal, ele próprio crescera ouvindo causos de seus antepassados. 

E gostava, verdadeiramente, daquelas histórias de antanho. 

Outro que se divertia, deixando-se levar pelo doce trinado das palavras, era um menino também de nome Francisco. Ouvia atentamente as histórias e, sentado onde estava, fazia suas próprias e inacreditáveis viagens. 

À medida que crescia, foi tomando gosto por outras coisas. Primeiro, pelas fitas do velho cinema em preto e branco. Mais tarde, descobriria a música e, de novo, as histórias - desta feita, dos livros. 

Francisco, o menino, acabaria por se encantar com Monteiro Lobato. Depois, um a um, os autores foram entrando em sua vida. Machado de Assis, Guimarães Rosa e um punhado deles. Aos poucos, descobriu que ele próprio também tinha o poder de criar seu próprio mundo. E de dar vida a personagens fabulosos que saiam, despudoradamente, de dentro das páginas. E uma extraordinária capacidade de dar asas à imaginação, de redescobrir o mundo e de sonhar. 

O menino cresceu, virou Francisco Sérgio e foi pra faculdade. Foi ser advogado, auditor fiscal e, por fim, delegado da Receita. Até hoje, no entanto, o doutor Nalini não se esquece das boas histórias que embalaram sua infância. E que fizeram dele bem mais do que um leitor de livros. 

O velho contador de histórias de Franca - cidade do interior de São Paulo, onde ele morava - acabaria por fazer dele um leitor de mundo. De política, de economia, de pessoas... 

Ao despertar nele a capacidade de inventar e encontrar suas próprias respostas, o homem o presenteava, no fundo, com muito mais do que um mero entretenimento. Estava a prepará-lo para a vida.