Fiódor Dostoiévski
Fiódor Dostoiévski

Reginaldo Miranda[1]

O último dia 11 de novembro assinalou o bicentenário de nascimento de um dos maiores romancistas de todos os tempos, mestre consagrado da literatura russa e universal, Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski, nascido em 1821, no Hospital dos Pobres de Moscou, onde seu pai clinicava. Filho do cirurgião-militar Mikhail Andréievitch Dostoiévski e de sua esposa Maria Fiódorovna, viveu os anos despreocupados da infância ao lado do irmão primogênito Mikhail e demais familiares, nesse ambiente depressivo e pesado do hospital, onde morava sua família, que não era rica, vivendo em aperturas financeiras.

Desde o alvorecer da juventude sua vida foi marcada pela tristeza e a dor. Em Darovóie, fazenda paterna nos arredores de Moscou, onde sua família passava o verão e a primavera, perdeu a mãe vítima de tuberculose em 1837, e o pai assassinado pelos servos da fazenda em 1839, quando contava incompletos 16 e 18 anos de idade, respectivamente. Depois da morte da esposa o marido mergulhou na depressão e no alcoolismo, acentuando a avareza e a rispidez, assim criando um clima pesado no ambiente familiar.

Em 1838, foi mandado com o irmão para estudarem na Escola de Engenharia Militar de São Petersburgo, então capital político-administrativa da Rússia, fundada em 1703, pelo czar Pedro, o Grande, na foz do rio Neva com o Golfo da Finlândia, no Mar Báltico. Ainda hoje é a segunda maior cidade da Rússia, a mais europeizada e o maior centro cultural do País. Ambiente propício para a formação intelectual de um jovem engenheiro e escritor. Por esse tempo trava contato com as obras de Honoré de Balzac, George Sand, Goethe e Skakespeare, dentre outros escritores ocidentais. Em 1843, conclui o curso de engenharia militar e alcança a patente de subtenente do Exército, cujo cargo abandona no ano seguinte.

Estreia na literatura em 1846, com a publicação do romance Gente pobre, que foi bem recebido pela crítica de esquerda por introduzir profundas mudanças nas formas de representação literária até então dominantes. Neste romance inaugural antecipa uma característica marcante de sua obra, a capacidade de penetrar fundo na alma humana. Porém, a publicação da novela O duplo, no mesmo ano o colocou em antagonismo com essa mesma crítica, que o atacou duramente, por não entender as inovações trazidas pelo novel escritor, cuja linguagem polifônica e dialógica rompia com o tradicional romance monológico. Nesta obra trabalha com os desvãos da alma humana, antecipando questões psicológicas e ecoando a multiplicidade de vozes. Publicaria nos anos seguintes, Noites Brancas (1848) e Nietótchka Niezvânova (1849), dentre outras que não receberam boa acolhida da crítica; a primeira novela o aproximando do romantismo pela atmosfera delicada e fantasmagórica que envolve a trama, cenário e protagonistas; o segundo, um romance inovador por antecipar descobertas da psicanálise mostrando a gênese dos sentimentos em seus aspectos mais contraditórios.

A partir de 1847, começa a frequentar reuniões de jovens socialistas utópicos que se reuniam em São Petersburgo, denominadas de círculo Petratchévski, em homenagem ao seu líder. Por essa razão, foi preso em 23 de abril de 1849, sob acusação de conspirar contra o regime do czar Nicolau I, que governava a Rússia de forma autoritária, sendo condenado à morte em novembro daquele ano. Em 22 de dezembro seguinte, juntamente com outros prisioneiros foi levado para o pelotão de fuzilamento, diante do qual depois de encenações recebeu a notícia de que sua pena fora comutada em cinco anos de trabalhos forçados na Sibéria. Essa cena patética montada pelas autoridades, que esperaram o momento da execução para dar-lhe a notícia marcou profundamente a sua sensibilidade.

Concluída a pena em 1854, permanece na Sibéria por mais cinco anos, reintegrado ao Exército. Nesse ínterim, casa-se em 1857, com Maria Dmitrievna Issáieva, viúva tuberculosa de um maestro, com quem mantinha affair em vida do marido. Por esse tempo, o novo czar Alexandre II, autoriza Dostoiévski deixar a Sibéria, depois de 10 anos de exílio.

De retorno a São Petersburgo, publica Recordações da casa dos mortos (1860), romance concluído cinco anos antes, quase autobiográfico relatando sua experiência na prisão, os sofrimentos físicos e mentais, a desumanização e cruel degradação do sistema prisional, assim como detalhes comportamentais e nuances delicadas do comportamento humano. Enfim, as lucubrações psicológicas que envolvem crimes e castigos, terror e resignação, transformando-a numa obra prima que tanto encantou outro gigante da literatura russa, León Tolstói. É uma das principais obras de Dostoiévski, assinalando uma nova fase em sua escrita, enfatizando problemas relacionados com a culpa e a punição, enfim, os limites da ação humana dentro da ordem social. 

Em 1861, em sociedade com o irmão Mikhail Dostoiévski funda a revista O Tempo, que é proibida de circular pela censura, dois anos depois. Neste mesmo ano publica na referida revista o romance Humilhados e ofendidos, encantando os leitores pela maneira intensa de narrar os sentimentos mais obscuros da alma humana.

Em 1862, faz a primeira de muitas viagens à Europa ocidental, conhecendo em Paris, a bela e obscura escritora russa Polina Suslova, por quem derrete-se de amores e mantém um relacionamento tempestuoso. Traído pela amante, retorna a São Petersburgo.

Em 1864, funda com o irmão a revista A Época, em que publica a primeira parte do romance Memórias do Subsolo, concluído naquele ano. Neste mesmo ano morre a esposa Maria Dmitrievna e o referido irmão Mikhail Dostoiévski, seu protetor e melhor amigo, deixando a família no maior desamparo. Por esse tempo sofria intensas crises de epilepsia e estava irremediavelmente entregue ao vício do jogo. No entanto, mesmo sofrendo essa dor atroz, endividado e com responsabilidades dobradas para sustentar a família do falecido irmão, jogou-se de corpo e alma na literatura produzindo dois interessantes romances, ambos publicados em 1866, Crime e castigo e O jogador, o primeiro, grosso modo, discutindo questões existenciais sobre como o ser humano se relaciona com as questões divinas e o outro desenvolvendo um tema familiar ao escritor, que era  viciado em jogo.  Este último, fora encomendado por uma editora que lhe adiantou honorários e o cobrava veementemente, sendo ditado à secretária por ele contratada, Anna Grigórievna, com quem se casaria no ano seguinte. Viajaram, então, pela Europa ocidental durante quatro anos, demorando-se em Genebra, onde nasceria e morreria a primeira filha, Sófia, com três meses de nascida, em princípio de 1868. Em 1869, nasce sua segunda filha, Liubôva. Embora tenha minorado as dificuldades financeiras com a publicação dos dois últimos livros mais uma vez sucumbiu ao vício da jogatina, enleando-se em novas e vivenciadas necessidades financeiras. Confortado pela esposa escreve e publica O idiota (1869) e O eterno marido (1870).

De retorno a São Petersburgo, em 1871, publica Os demônios, seguido de O adolescente (1875), Duas narrativas fantásticas (1876), Uma criatura gentil (1876) e Os irmãos Karamazov (1880), obra-prima da maturidade. A partir de 1873, passou a editar a revista Diário de um escritor, na qual publicava novelas, artigos sobre política e crítica literária. Em São Petersburgo, ainda nasceriam dois filhos: Fiódor, em 1871 e Alexei, em 1875, esse último falecendo com três anos de idade, depois de uma crise de epilepsia.

Faleceu Dostoiévski, em 9 de fevereiro de 1881, com 59 anos de idade, na cidade de São Petersburgo, onde foi sepultado três dias depois diante de uma multidão de admiradores que acompanhou o cortejo. Conforme se viu, de seus quatro filhos apenas chegaram à idade adulta Liubôva e Fiódor, sendo que a primeira faleceu sem deixar sucessores; Fiódor, teve dois filhos sendo um de igual nome que faleceu jovem e outro por nome Lopatin, que também teve dois filhos: Tatiana, que não tem sucessores e Dimitry Andreevitch Dostoiévski, este último pai de Aleksei Dostoiévski e avô das filhas deste: Anna, Vera e Maria, tetranetas do notável escritor, todos residentes em São Petersburgo, onde vivem com poucos recursos, porém, interessados na preservação da memória do ilustre ancestral.

Fiódor Dostoiévski deixou uma obra imorredoura, abordando com propriedade questões existenciais e temas ligados à liberdade, religião, humilhação, culpa, loucura, assassinato, suicídio e diversos outros estados patológicos do ser humano. Discute à exaustão os limites impostos ao homem, cabendo-lhe respeitá-los como a maioria da manada formada pelos homens ordinários ou ultrapassá-los, ainda que à custa de enormes sacrifícios. Cria embates de ideias com múltiplas opiniões, dramatizações, lucubrações, enfim, desnuda a alma humana sem condescendência, o que torna sua obra universal. Foi um dos principais representantes do realismo russo, introduzindo profundas inovações e alargando o universo romanesco. Tomamos contato com sua obra e a lemos com certo método nos tempos de estudante universitário, provocando-nos profunda impressão. Por essa razão, associamo-nos aos seus demais admiradores para enfatizar essa importante efeméride, duzentos anos de seu nascimento. E não temos dúvidas de que daqui a mais duzentos anos não será menor a admiração de nova geração de leitores pela obra desse mestre russo da literatura universal. Entre nós, circula com maior riqueza desde que passou a ser vertida para o vernáculo diretamente do russo e não mais do francês, assim encontrando-se mais perto da originalidade. A maior homenagem que pode ser feita à sua memória é revisitar-lhe a obra e suscitar a crítica. Assim seja.

 


[1] REGINALDO MIRANDA, advogado e escritor, membro efetivo da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. E-mail: [email protected]