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Pierre mordiscou a ponta do charuto. Encostou-se nas almofadas da cadeira Voltaire. Os painéis das paredes, iluminados por dois castiçais de cinco velas de bobeche móvel, tinham amaciado o brilho da seda marfim em que os painéis eram pintados. Numa cena do Século XVIII um personagem mitológico se preparava para atirar uma flecha. Pierre mergulhou em cogitações.

 

- Sabe o que aconteceu então? - perguntou o velho.

 

E ficou em silêncio.

 

- Um furto, respondeu o velho. Fui furtado de um pequeno cofre.

 

E ergueu-se, levantou-se, pôs-se de pé e andou, solene, até um chiffonier encostado nas cortinas. De lá mostrou um cofre de metal. “Igual a este”, disse. Era um cofre de viagem médio. Media cerca de 30 centímetros cúbicos e se formava por revestimentos de ferro certamente separados por substâncias ignífugas. Abria-se por uma chave brocada artisticamente trabalhada.

 

- Eram jóias?

 

- Não - cortou o velho. Ali Ifigênia guardava ouro. Eram libras esterlinas, de ouro, do toque de 0,900. Foi o único furto que não consegui descobrir. Depois disto os valores todos eu os guardava no cofre grande. Nunca consegui saber, Ifigênia sempre disse que Maria Caxinauá era a culpada. Na época, ela foi amarrada a um formigueiro e quase morreu. Mas nada confessou. Meu filho, quando soube, foi em sua defesa. Mesmo que eu tivesse continuado as investigações e a mandasse supliciar até a morte, ela morreria sem nada confessar. O quê?

 

Tossiu. Pegou a taça, encostou as costas retas no espaldar e reinou o pescoço com um puxão. Ferreira incomodado, mexeu-se e perguntou:

 

- Algum empregado? Alguém pode ter ficado rico, gastando, dando sinais de riqueza...

 

Era como se o velho estivesse a um megaparsec:

 

- Ninguém. Nem pode ter sido um empregado qualquer ... dificilmente foi um Caxinauá ... O cofre está aqui, continua aqui, tenho certeza.

 

- Como sabe? perguntou Ferreira, apertando o laço da gravata.

 

- Por isso mesmo. Ninguém apareceu rico, e os Caxinauás não conhecem o valor do dinheiro. Além disso, é impossível para um Caxinauá viver fora da tribo. Eles constituem um povo simbiótico, um organismo só, vivo, único. Não são seres individuais. O indivíduo é o povo, a raça. Por isso foi tão fácil amansá-los. Um índio sozinho não poderia ter roubado o cofre e fugir para Manaus ou Belém. Não os Caxinauás.